“Sou a garota que foge dos pais e acaba nos braços da literatura” declara a escritora argentina em
“A viagem inútil: trans/escrita” publicado pela Fósforo Editora
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
“A primeira coisa que escrevo na vida é meu nome de homem”, nos diz Camila Sosa Villada neste livro-ensaio “A viagem inútil: trans/escrita”. Se essa lembrança tão antiga, sobre a escrita de um nome abandonado há muito tempo, é trazida logo no início do texto, o ato de escrever também terá um papel primordial um pouco depois no ensaio, ao falar de seu processo de transição: “Meu primeiro ato oficial de travestismo não foi sair à rua vestida de mulher, como todas costumam fazer. Meu primeiro ato de travestismo foi pela escrita”. “A viagem inútil: trans/escrita” é um lançamento da Fósforo Editora com tradução de Silvia Massimini Felix.
A figura paterna
Um dos nomes mais celebrados da literatura latinoamericana contemporânea, a escritora e atriz Camila Sosa Villada mergulha aqui na gênese da sua escrita e no seu primeiro contato com a literatura, enquanto leitora. Nestes dois gestos — aquela que lê e aquela que escreve — temos a presença de duas figuras fundamentais: o pai e a mãe. Com a figura paterna, Camila escreve naquele passado que parece alocado noutra vida — aliás, não deixa de ser outra vida — as curvas e dobras que formam cada letra de seu antigo nome. “Esse período de aprendizagem com meu pai é o que me garante que ‘nem sempre houve guerra entre vocês’. Houve amor. Ríamos juntos. Me ensinar a escrever é o gesto de amor que meu pai me oferece”.
A figura materna
Se com o pai a escrita entra na vida da autora argentina, a leitura se apresenta por intermédio da mãe, ouvindo-a lendo página após página de histórias em casa. “Usa o mesmo método para ler para mim. Ela deita ao meu lado e com o dedo vai apontando cada palavra que lê. (…) Podemos passar horas lendo, uma ao lado da outra”. Se a leitura começa com o gesto da escuta, não demora muito para que Camila a domine, torne-a parte de si. O que, então, acaba por afastá-la da mãe, ao se trancar na tranquilidade do quarto para mergulhar e se perder entre páginas e livros. “Um refúgio. E, acima de tudo, descubro que existe um poder no exercício da leitura. O poder do prazer da solidão”.
“Sou a garota que foge dos pais e acaba nos braços da literatura”.
Um gesto político
Para Camila Sosa Villada, a escrita literária é um gesto político, é por meio dela que a autora se reescreve, desenhando uma cartografia íntima: “Escrever faz com que eu me encontre comigo mesma”. Encontrar consigo no texto, encontrar consigo enquanto texto. “A travesti é irmã da escrita”, ela declara — apenas uma das inúmeras declarações antológicas deste breve texto. Camila lembra que estamos num momento enquanto sociedade e humanidade em que travestis recuperaram a própria voz:
“É necessário usar essa voz. Voltar a usá-la. Contar o preço que deram à minha liberdade e ao meu desejo e que eu paguei com o que eu tinha em mãos: meu corpo.”
Se a literatura não soluciona os problemas da vida, ela permite um novo olhar para esses problemas. “A literatura não escreveu nenhuma solução para os danos da minha vida. Só gravou em mim uma virtude, um sentido poético com o qual olho para as coisas”. A entrada da escrita na vida da autora inaugura uma nova impossibilidade: viver sem ela. “Se eu não escrevesse, é bem possível que minha vida tivesse sido um inferno. Eu teria me suicidado, cansada de ser invisível até para mim”.
“A viagem inútil: trans/escrita” é um texto brilhante de uma autora que carrega no próprio corpo um gesto de escritura e reescritura contínua. Ao olhar para o mais íntimo de si, Camila Sosa Villada faz um estudo pungente sobre as relações entre a pobreza e a carência, a violência e o afeto, a escrita e a autopreservação. “Que tudo isso que escrevo nada mais é do que um ato de amor por mim mesma.”
Encontre “A viagem inútil: trans/escrita” aqui
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)