Trilogia A guerra da papoula lançada pela Intrínseca é marcada por olhar crítico, unindo a fantasia à ficção histórica e de guerra
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
A escritora sino-americana R. F. Kuang cria universos onde não faltam elementos mágicos tão caros à literatura de fantasia. Mas seu olhar é atento, sobretudo, a questões muito próximas, que dizem da nossa construção enquanto seres humanos e enquanto sociedade. O encontro entre o real e o fantástico, no texto de Kuang, é matéria para uma crítica política, histórica, cultural e social pungente. “A guerra da papoula”, “A república do dragão” e “A deusa em chamas” são publicados pela Editora Intrínseca.
A trilogia “A gerra da papoula” é um claro exemplo disso, numa jornada tanto delicada quanto brutalmente construída a partir da história da China no Século XX – numa costura possibilitada pela ficção, acontecimentos ainda mais antigos da história chinesa também se entrelaçam, num olhar dedicado para o domínio e a exploração entre povos que marca, desde tempos imemoriais, a própria história humana na Terra.
A trilogia
“A guerra da papoula”, “A república do dragão” e “A deusa em chamas” se inspiram, especialmente, na Segunda Guerra Sino-Japonesa, conflito militar travado entre a China e o Japão entre 1937 e 1945, a maior guerra asiática do século XX. As duas Guerras do Ópio, travadas entre China e Grã-Bretanha no século XIX, também emprestam elementos históricos para a ficção-fantástica de Kuang.
Na figura de uma jovem órfã, Fang Runin – ou, simplesmente, Rin – moradora de uma das províncias mais pobres de seu país, mergulhamos no passado e no presente do Império Nikara, nação ficcional inspirada na China, e sua luta contra a Federação de Mugen, um país oriental vizinho, responsável por uma série de ocupações que resultaram em duas Guerras da Papoula. Uma terceira está prestes a eclodir.
Esse não é o único conflito de grande magnitude dos romances. Há também a presença ocidental, que surge como promessa de ajuda, desde que determinados interesses sejam atendidos. Além disso, a própria nação Nikara é marcada por uma série de conflitos internos, resultando num sistema de governo fragmentado e dominado por uma clima de conspiração em todas as suas esferas.
“A única coisa permanente neste Império é a guerra”, diz a protagonista.
Alucinógeno
Na liberdade proporcionada pela fantasia, R. F. Kuang trata de temas como o colonialismo, a xenofobia, a violência desmesurada da guerra, o xamanismo, além de questões de classe e de raça. É no olhar sobre o xamanismo – e sua relação com o consumo de substâncias alucinógenas – que se dá o principal elemento de fantasia da trilogia. A jovem protagonista descobre ser uma poderosa xamã, incorporando em si uma deidade: a Fênix. Com tamanho poder em mãos – que tem como o marca o fogo, que consome, que destrói – Fang Runin se transforma numa letal arma de guerra, caminhando entre a autonomia e a instrumentalização desse poder. Vítima e algoz, inimiga e aliada, Rin é uma anti-heroína complexa.
Os três livros não poupam o leitor de cenas brutais de violência nos fronts de batalha e na dominação de uma população por outra. Mas o choque com a brutalidade não se dá por nenhum elemento fantástico, mas sim pelo horror puramente humano por trás de cada um desses atos de guerra. Uma das cenas mais trágicas da longa história de Kuang traz ecos de um dos momentos mais vergonhosos da Segunda Guerra Sino-Japonesa: o Massacre de Nanquim. Não preciso descrever aqui os atos perpetrados pelas tropas do império Japonês contra a cidade chinesa de Nanquim entre 1937 e 1938.
“Talvez isso tivesse sido exatamente o que possibilitou a carnificina. Quando se ignora a humanidade de alguém, é fácil matá-lo”.
Conclusão
Em um crescente, os livros seguem numa evolução de temas e da própria maturidade da escrita da autora, seguindo em direção a uma conclusão tanto inevitável quanto surpreendente. Não à toa, os dois primeiros volumes integram a lista das 100 melhores fantasias de todos os tempos pela revista Time.
Numa escrita tão sedutora quanto a voz da deusa Fênix que a cada página tenta dominar a jovem xamã e protagonista da trilogia, R. F. Kuang constrói um universo complexo e detalhado que captura completamente a atenção do leitor. Os três volumes caminham entre a literatura de fantasia e a ficção histórica, abrangendo, ainda, elementos da literatura de guerra e de estratégia. A magia em R. F. Kuang é tanto uma chave, quanto uma prisão. O poder sobrenatural aqui é também um fardo, num tênue e difícil equilíbrio entre a sanidade e a loucura.
Encontre “A guerra da papoula” aqui
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)