
Djaimilia Pereira de Almeida. Foto: Ana Branco - O Globo
Neste 8 de março, trazemos três grandes vozes femininas e negras da literatura internacional, com trabalhos lançados recentemente no Brasil, para que você conheça.
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Três autoras e livros que refletem acerca de questões de gênero, raça, maternidade e colonialismo. É a pedida do dia para você ficar por dentro da produção de autoras negras. São enredos ora sensíveis, ora contundentes, sempre únicos.
Há, por exemplo, uma jovem autora norte-americana com o elogiado primeiro romance ao lado de uma das mais premiadas autoras na literatura dos Estados Unidos contemporânea. E também, direto de Angola, um dos grandes nomes da literatura em língua portuguesa na atualidade.
“Esse cabelo”, de Djaimilia Pereira de Almeida
Mila teve o primeiro corte de cabelo aos seis meses de idade. Segundo testemunhas e escassas fotografias, o cabelo era, até então, liso. Renasce do corte crespo e seco. “Nasce daquele corte a biografia do meu cabelo”. Esta biografia toma corpo e páginas em “Esse cabelo”, primeiro romance de Djaimilia Pereira de Almeida. Mila, narradora e protagonista, é um alter-ego de Djaimilia. O romance ganha nova edição brasileira pela Todavia Livros.
Entre o romance de autoficção e o ensaio
Filha de pai português e mãe angolana, Mila chegou a Portugal ainda na primeira infância, aos três anos. De Luanda para Lisboa, desde então, ela se encontra em uma espécie de não-lugar, não-pertencimento. Nem plenamente europeia, nem africana. A história do próprio cabelo se torna, assim, um material rico e, aparentemente, inesgotável para reflexões acerca da identidade, do colonialismo, da consciência da própria negritude e do racismo. Numa linguagem ágil, como numa longa conversa com o leitor, “Esse cabelo” caminha entre o romance de autoficção e o ensaio.
Mila rememora diversas – mais trágicas que felizes – experiências com salões de beleza. Sua primeira ida ao salão foi com a mãe em Portugal. O produto para alisar seus cabelos era indicado ao público infantil. Apesar de sua química abrasiva, que obrigava o uso de luvas pelo profissional, sua embalagem trazia crianças negras risonhas e de cabelo liso: “Publicidade enganosa, perceberia eu no dia seguinte”. Futuramente, ao procurar uma cabeleireira para seu casamento, foi recusada: “uma rapariga de cabelo lilás me informou de que ali não se tratava de cabelos como o meu”.
Importância da representatividade
Há um capítulo em especial em “Esse cabelo”, em que a narradora diz sobre uma fotografia de Elizabeth Eckford, símbolo da luta anti-racista norte-americana. Mila se metamorfoseia na própria Elizabeth: “Uma das poucas fotografias em que surjo penteada foi tirada por um Will Counts em setembro de 1957. É talvez estranho que, sendo um autorretrato meu, tenha sido capturado por outra pessoa (…) muito antes de eu ter nascido”. Djaimilia escreve aqui sobre a importância da representatividade de uma maneira genial.
Em 2011, numa tentativa de esquecer do próprio cabelo, ela o corta. Mas conclui, “não posso é esquecer-me deste cabelo sem esquecer também de mim”. Aliás, é após este corte que surge a vontade de saber de sua própria história, tão umbilicalmente ligada aos cabelos crespos. Sendo assim, a história de Mila é a história de muitas e muitos, narrada de forma engenhosa por uma das vozes mais importantes da literatura em língua portuguesa hoje.

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“Em carne viva”, de Jacqueline Woodson
Eleito livro do ano pelo The New York times, “Em carne viva”, de Jacqueline Woodson, tem início no aniversário de 16 anos de Melody. Para sua família, esta data também é uma cerimônia de maioridade, um rito de passagem obrigatório. Sua celebração acontece após um hiato – o festejo de sua mãe, Iris, não fora realizado no passado: “A minha era a única cerimônia que pulava uma geração de mães que exibem as filhas”. O vestido de Iris – que não caberia numa jovem grávida nos anos 80 – encontra seu destino agora, em Melody, em 2001. O livro, com tradução de Claudia Ribeiro Mesquita, é um lançamento da Todavia Livros.
Polifonia do texto
O texto de “Em carne viva” é construído como um mosaico. Ou seja, polifônico, cada capítulo é narrado em primeira pessoa por um de seus diferentes personagens. Uma família negra americana: filha, neta, pai, avó e avô. A partir da experiência de cada elo desta família, buscamos reconstruir parte de sua linhagem. Mergulhamos nos pensamentos de seus personagens e suas lembranças – sejam aquelas que eles insistem em tentar esquecer ou aquelas que precisam perfurar fundo o chão da memória para alcançar.
Jacqueline Woodson trabalha também diferentes conflitos familiares e geracionais, sobretudo as relações entre mãe e filha. A gravidez tão jovem – uma criança cuidando de outra criança – e o distanciamento de Iris em relação à sua própria família, refletem no futuro da relação entre as duas: “Não tinha ideia de que no fim da gravidez tinha a maternidade”.
Luta contra o esquecimento
A reconstrução da história da família também remonta dois acontecimentos reais e marcantes da história norte-americana. Primeiro, um massacre racial em tulsa em 1921, onde esta linha famíliar quase foi interrompida: “Os brancos tentaram matar cada corpo negro vivo”. Há uma necessidade de que esta história continue sendo contada de geração a geração, para não deixar que ela caia no esquecimento. 80 anos depois, a autora revive o trauma do 11 de setembro pelo olhar de uma de suas protagonistas, numa construção textual que emociona.
Há um momento em que Melody entende a si própria como uma narrativa, a história quase esquecida de alguém: “Eu fazia parte de uma extensa linhagem de histórias quase apagadas”. Ao trabalhar questões como ancestralidade e construção da própria identidade, Jacqueline Woodson dá voz e corpo, em um texto sensível e envolvente, a outras histórias de famílias negras. Histórias e trajetórias que, muitas vezes, também lutaram, e seguem lutando, contra o esquecimento.

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“Lúxuria” , de Raven Leilani
Em um aplicativo de encontros, a coordenadora editorial Edie conhece Eric, casado em um relacionamento aberto. Ela é uma jovem mulher negra. Ele, um homem branco de meia idade. Juntos, os personagens desenvolvem uma intrincada e intensa dinâmica emocional e sexual, perpassada por questões geracionais, de gênero e de raça, por exemplo. Edie é a protagonista de “Luxúria”, romance de Raven Leilani, lançado pela Companhia das Letras com tradução de Ana Guadalupe.
Uma inesperada dinâmica familiar
Ao perder o emprego e ser despejada de seu apartamento, Edie encontra refúgio na casa de Eric. Detalhe: o convite parte não dele, mas de sua esposa, Rebecca. É dentro deste lar que o brilhantismo da narrativa de Leilani acontece, neste acordo social curioso e surpreendente. Convidada a permanecer no lar de outra família, Edie passa a refletir sobre seu próprio processo de crescimento, sobre seu lar na infância.
Se a dinâmica com Eric era intensa, outras mais complexas serão desenvolvidas com as duas mulheres da casa. Akila é uma adolescente de 12 anos, negra, adotada pelo casal: “não tem pessoas negras nesse bairro”, ela diz para a protagonista. No convívio com Akila, ela entende o motivo do convite para adentrar aquele lar: não há referências negras no dia-a-dia da adolescente, que sofre com a adaptação numa realidade ofuscada pelo branco. Em resumo: o vidro do espelho que reflete as realidades e as vivências das duas mulheres negras é trincado, machucado.
Tensão constante
Com Rebecca, uma relação de poder e dependência mútua é desenvolvida: ora agressiva, ora terna, sempre inesperada. Há uma tensão constante no texto de Leilani, na medida em que o relacionamento entre elas avança. Tudo parece por um fio, sempre prestes a ruir, em um clima de tensão crescente. É muito interessante, e comovente, como uma nova dinâmica familiar se desenvolve naquele lar. Na medida em que as três mulheres se aproximam e se repelem, se machucam e se apoiam, e os papéis de mãe, filha, esposa e amante se confundem.
Numa prosa deliciosamente afiada e ácida, “Luxúria” é a todo momento tensionado por questões de classe, geração, gênero e raça. Raven desenvolve um sensível estudo sobre ser uma jovem millennial negra numa sociedade fundamentada pelo racismo estrutural. Sobre a busca por uma identidade e por referências na construção de si. E, ainda, sobre a solidão e as diferentes ausências que constituem o ser.

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural, sempre gasta metade do seu horário de almoço lendo um livro. Seu Instagram é @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel/)