A noite em que grandes ícones da música se encontraram para registrar a antológica “We Are The World”, em 1985, é tema de documentário da Netflix
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Quem já era no mínimo adolescente no hoje distante ano de 1985 certamente se recorda do impacto que foi o lançamento da música “We Are The World”. A composição de Michael Jackson e Lionel Ritchie, pensada para ser entoada por um time que reuniria os artistas da música norte-americana mais populares à época, tinha um propósito bem preciso: arrecadar fundos para o combate à fome na África e, do mesmo modo, para viabilizar o tratamento de doenças enfrentadas pela população daquele continente. Pois é justamente sobre a gravação história deste verdadeiro hino que um dos mais recentes documentários disponibilizados na Netflix lança holofotes: “A Noite que Mudou o Pop”, dirigido por Bao Nguyen.
Antes de avançar na produção propriamente dita, é preciso lembrar que estamos falando de um tempo bem diferente. Naqueles meados dos anos 1980, não existia internet e certamente nem os mais visionários sonhavam com o advento do streaming. No entanto, os clipes se tornavam cada vez mais populares, propulsionados principalmente pelo crescente sucesso da MTV nos Estados Unidos. Michael Jackson, claro, já era um dos expoentes que mais exploravam o formato, tendo lançado, em 1982, aquele que um verdadeiro marco do gênero, “Thriller”. Assim, além da música propriamente dita, “We Are The World” teve um registro audiovisual que também percorreu o mundo.
A inspiração
O documentário tem início mostrando a raiz de todo o processo que resultou na gravação de “We Are The World”. Sim, quase todos se lembram, a semente foi a gravação do single britânico “Do They Know It’s Christmas?” um ano antes, ou seja, em 1984. Esta iniciativa foi capitaneada por Bob Geldof e Midge Ure, e visava arrecadar fundos para combater a fome na Etiópia. A gravação contou com lendas como George Michael, Phil Collins, Bono Vox, Simon Le Bon e seu Duran Duran, Boy George (e outros integrantes do Culture Club), Steve Norman (e demais companheiros do Spandau Ballet), Paul Young e muitos outros.
Harry Belafonte
À época, Geldof e Ure estavam, como tantos outros, profundamente impactados por uma série de matérias feitas pelo jornalista Michael Buerk para a BBC, que mostrava nuances da fome que atingia aquele país da África oriental. Já nos Estados Unidos, o mérito maior da ação artística-humanitária deve ser dado ao ator e ativista Harry Belafonte (1927 – 2023), à época já envolvido com a organização da United Support of Artists for Africa (a USA for Africa). Foi Belafonte que tomou a iniciativa de procurar o empresário de mídia Ken Kragen, que, na sequência, convidou Lionel Ritchie e Kenny Roger, artistas que empresariava. O terceiro artista a abraçar a causa foi Stevie Wonder, que, inclusive, inicialmente seria um dos compositores da composição.
Quem é quem
Já Lionel Ritchie foi o responsável pela adesão de Michael Jackson ao projeto. Para a co-produção, nem poderia ser diferente: o maestro e arranjador Quincy Jones assumiu as rédeas. Ao fim, por conta da agenda, Stevie Wonder não pode participar do processo de composição, que, assim, ficou a cargo de Jackson e Ritchie. E, enfim, nascia “We Are The World”. Gravada na madrugada de 28 de janeiro de 1985 e lançada em 7 de março de 1985, a canção contou, ao fim, com participação do quem é quem da música norte-americana na época.
Elenco
Ou seja, nomes como Bob Dylan, Ray Charles, Bruce Springsteen, Paul Simon, Tina Turner, Willie Nelson, Dionne Warwick, Diana Ross, Kim Carnes, Cindy Lauper, Daryl Hall & John Oates, Al Jarreau, Billy Joel, James Ingram, Huey Lewis, Smokey Robinson, Bette Midler e muitos outros. Importante lembrar que alguns desses só participaram do coro de “We Are The World”. Do mesmo, modo, o documentário mostra que houve uma indecisão entre convidar Madonna ou Cindy Lauper (mas não explica porque não as duas). Como todos sabem, Cindy (foto abaixo) foi o nome escolhido.
Aliás, há um ponto sobre a cantora de “Girls Just Want to Have Fun” bem hilário. A parte cantada por Cindy vinha acompanhada de um ruído não identificado. Com muito custo, concluíram que era um barulho provocado pelos vários adereços – pulseiras, colares e brincos – que a nova-iorquina usava. Uma presença aguardada era a de Prince, mas ele não assentiu ao convite. Assim, o trecho que cantaria solo foi dado a Huey Lewis.
Depoimentos
O documentário ganha muitos pontos ao ser de certa forma conduzido por Lionel Ritchie, 74. Como um dos principais articuladores do encontro que resultou na gravação de “We Are The World”, Lionel relembra cada momento, assim como conta casos bem engraçados, sobre o inusitado encontro com uma cobra de Michael Jackson. Mas outros nomes dão depoimentos importantes, caso de Huey Lewis (Huey Lewis and the News), 73, e do próprio Bruce Springsteen, 74, além de Cindy Lauper, hoje aos 70 anos de idade.
Lionel conta, por exemplo, que a escolha da data não poderia ser outra: afinal, naquele dia, vários artistas norte-americanos estariam em Los Angeles por conta da entrega do American Music Awards. Aliás, Lionel foi um dos grandes vencedores da noite. Ele, que estava no início da carreira solo, após deixar o grupo Commodores, levou para casa vários prêmios, embora a atenção do astro estivesse totalmente centrada no que aconteceria depois.
Movimentação
A movimentação não passou despercebida para a imprensa, que pouco a pouco passava a registrar os convidados chegando em seus carrões no estúdio. Eis que Billy Joel se despede com um beijo da megamodelo Christie Brinkley, para quem compôs “Uptown Girl”, antes de entrar no estúdio para gravar “We Are The World”. Abaixo, a estrela Dionne Warwick.
No curso da gravação, houve, sim, quem errasse. E também quem desistisse, como o cantor country Waylon Jennings, que parecia não acreditar quando Stevie Wonder sugeriu que um um trecho da música fosse cantado em suaíli e, assim, tirou o time de campo.
Momentos únicos
Bob Dylan é retratado como um dos convidados mais intimidados ali, diante da legião de ícones com vozes tão poderosas. E Wonder foi dar uma ajuda. Um momento de descontração é quando todos começam a cantar “Banana Boat Song (Day-O)”, música tradicional jamaicana que ficou mundialmente famosa por conta de uma versão de Harry Belafonte. As brincadeiras envolvendo Ray Charles e Stevie Wonder também trataram de deixar o ambiente mais leve.
Mas, brincadeiras à parte, o assunto era sério, seriíssimo. E a presença de Bob Geldof no estúdio tratou de dar a real. Há um momento no qual os participantes são convocados a lembrar o motivo de estarem ali, com dados sobre a realidade na África. “Para aquelas pessoas, o nada é não ter nem sequer água. Vemos meningite, malária e febre tifoide. Vemos cadáveres dispostos lado a lado”.
O documentário “A Noite que Mudou o Pop” mostra, ainda, que Al Jarreau andou exagerando um pouco na quantidade de álcool ingerida na gravação. Da mesma forma, a cantora, baterista e percussionista Sheila Escovedo, a Sheila E., revela que, em dado momento, teve a percepção de que o convite feito a ela teve, na verdade, a função de atrair Prince. Ela seria a isca, dada a amizade com o artista, que faleceu em 2016. De todo jeito, um esforço em vão, já que Prince acabou de fato não indo. Abaixo, foto de Sheila E.
E Diana Ross foi uma das poucas que não queriam que aquela noite ali terminasse.
Saldo
No balanço final, “A Noite que Mudou o Pop” é uma atração imperdível para quem viveu a época. Adentrar aqueles bastidores, entender como a canção foi forjada, quem aderiu de pronto, quem esnobou, quem foi esnobado, quem dava as caras na época… Tudo isso fornece peças que, na cabeça de quem estava ali, são pura nostalgia. Impossível não se identificar com roupas, penteados, lembrar outros eventos que antecederam ou sucederam aquilo. Tanta coisa interligada, tantas conexões (com cinema, por exemplo)…
Mas, claro. Do mesmo modo, mesmo para quem não era nascido, “A Noite que Mudou o Pop” é entretenimento dos bons. Talvez, para quem não tenha vivido a época, soe como exagero dizer que aquela noite mudou a história do pop, mas não há como negar que foi um marco. Os números estão ao alcance de qualquer um que se dispuser a pesquisar na internet. O single, o álbum e o videoclipe renderam cerca de 55 milhões de dólares.
A vendagem atingiu 7 milhões de cópias só nos Estados Unidos. “We are The World” liderou paradas musicais mundo todo, tornando-se o single mais rapidamente difundido na história da música pop e um dos mais vendidos de todos os tempos. Não bastasse, foi o primeiro single certificado com “platina múltipla” e “platina quádrupla” pela Recording Industry Association of America (RIAA).
Confira o trailer de “The Greatest Night in Pop”
Confira, abaixo, o vídeo da antológica canção