
O dramaturgo Wajdi Mouawad. Crédito: Neil Mota
Por Lara Alves *
Ainda pouco conhecido do grande público brasileiro, Wajdi Mouawad é uma das principais figuras do teatro contemporâneo mundial. O autor da tetralogia “Sangue das Promessas” – composta pelas peças “Litoral” (1999), “Incêndios” (2003), “Florestas” (2006) e “Céus” (2009) – transpõe para suas dramaturgias resquícios de memória de seu próprio passado. Céus, com direção de Aderbal Freire-Filho, será apresentada dias 16 e 17 de março no Teatro Bradesco BH.
Nascido no Líbano, o autor precisou deixar o país aos 10 anos. Ele partiu em busca de refúgio após o início de uma guerra civil que devastou a região. Com o passado marcado pela tragédia e as asperezas da guerra, Wajdi é dono de uma extensa produção artística. A escrita dele é marcada pela discussão sobre o tempo, pelos infortúnios dos protagonistas e pela existência de uma herança imaterial que sobrecarrega gerações inteiras. São peças que propõe críticas severas ao crescimento do terrorismo no mundo moderno e à intolerância religiosa, tal qual parece apostar na força da cultura nas gerações futuras.
Para o ator e idealizador do Janela de Dramaturgia, Vinícius Souza, a obra do dramaturgo perpassa a ancestralidade dos protagonistas. Sagas modernas são construídas a partir de passados controversos.
“O Wajdi bebe um pouco da fonte das tragédias gregas e romanas para criar novas tragédias com abordagens contemporâneas. São permeadas pela ideia do personagem que carrega um passado familiar e precisa acertar as contas com o que diz respeito à sua origem. É importante deixar bem claro que ele não é um tragediógrafo, mas em quase todas as peças o personagem tem uma missão a cumprir. É curioso como Wajdi traz questões importantes como as situações de guerra dos países do Oriente Médio e temas como o amor, a morte e o tempo. É um dramaturgo de temas fortes”, explica Vinícius.
Do Líbano para o mundo
Ganhador de importantes prêmios – entre eles o Prêmio Literário Governor General’s Literary Award de melhor texto teatral para o espetáculo “Litoral” –, o dramaturgo ganhou espaço entre diretores e atores de todo o mundo que, nos últimos anos, têm se debruçado sobre sua produção. É incontável o número de montagens produzidas a partir de adaptações dos textos de Wajdi.
Suas peças foram traduzidas em mais de quinze idiomas e apresentadas por vários países, entre eles Alemanha, Itália, Espanha, Japão, México, Austrália e Estados Unidos. Inclusive, seu trabalho de maior projeção, “Incêndios”, foi adaptado ao cinema por Denis Villeneuve e concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2011. Curiosamente, Wajdi não gostou do resultado final do trabalho do diretor franco-canadense.

Incêndios, peça de teatro com Marieta Severo e elenco. 19/10/2013.
Montagens brasileiras
No Brasil, “Incêndios” foi publicado em 2013 pela Editora Cobogó. Está esgotado já há um bom tempo. A montagem encenada sob direção de Aderbal Freire-Filho e protagonizada por Marieta Severo, angariou diversos prêmios e rodou o país. Agora, o mesmo diretor assina “Céus”.
Última montagem da tetralogia, o espetáculo reúne os atores Felipe de Carolis, Rodrigo Pandolfo, Marco Antonio Pâmio, Karen Coelho e Isaac Bernat no palco do Teatro Bradesco e narra a trajetória de especialistas isolados em uma espécie de bunker que precisam desvendar um iminente atentado terrorista.
Além das montagens que desembarcam na capital e trazem para o público mineiro obras de Wajdi, o ator mineiro Assis Benevenuto foi responsável pela tradução inédita do texto “Litoral”, no Brasil. Em 2016, os atores do grupo Quatroloscinco dirigiram a montagem homônima como espetáculo de formatura dos alunos do Cefart do Palácio das Artes.

Traduzir, encenar. Contrapondo a cultura de produção autoral que existe no teatro de
BH, Assis Benevenuto e o Quatroloscinco foram responsáveis por traduzir e apresentar “Litoral” na cidade. Crédito: Paulo Lacerda
O poder da palavra
De uma ponta a outra, o nome de Wajdi Mouawad figura entre os mais importantes personagens do teatro contemporâneo nas últimas décadas. E uma pergunta permeia discussões sobre a obra do libanês: o que provoca tamanho fascínio?
“Wajdi traz um requinte para seus textos, ele tem uma língua muito apurada e um texto que usa bastante a palavra em um tempo no qual, em geral, o teatro contemporâneo se volta mais para o imagético, para algo mais físico, do corpo e do espaço. A palavra, ali, é tão forte que consegue criar universos, consegue criar imagens”, pontua Vinícius Souza.
Questões de tempo
Extrapolando as tendências do teatro dos últimos anos ao abarcar o uso da palavra afiada, Wajdi não abre mão de textos longuíssimos e, mesmo com quatro horas e meia (o tempo da montagem original de “Litoral”), consegue manter confortável o espectador e capturá-lo para a saga do protagonista.
“O poder de escrita dele (Wajdi) é muito profundo e fazer peças longas é uma grande característica. É impressionante quando você vê uma obra tão grande, mas que está com você durante todo o tempo. Você mergulha naquele universo e quando percebe já está lá, lutando junto com o personagem”, explica Assis Benevenuto.
O tempo, inclusive, é um grande aliado do autor libanês. Ao trazer à baila questionamentos sobre ancestralidade e passado, propõe discussões sobre o tempo dos dias atuais.
“O Wajdi consegue alcançar, através das palavras, sentimentos e pensamentos muito complexos do ser humano. Hoje, em geral, estamos acostumados a habituar narrativas muito curtas, construídas em espaços de tempo muito curtos; isso muito em parte pela maneira como a gente acessa os conteúdos com rapidez por meio da internet. Ele vem na contramão disso. Propõe uma obra de comprimento, de espessura, uma obra onde você acompanha uma saga que perpassa tempo, que perpassa gerações. Esse é um grande diferencial: Wajdi propõe um “contratempo” para falar do nosso tempo”, pontua Vinícius.

Cena de Céus, com direção de Aderbal Freire-Filho. Foto: Leo Aversa/Divulgação
Tetralogia simplificada
Litoral: Após a morte do pai desconhecido, Wilfrid precisa voltar a sua terra natal para enterrá-lo. Atravessa países devastados e jovens marcados pela guerra.
Incêndios: O passado misterioso de uma imigrante árabe que vive no Canadá, que faz em seu testamento uma estranha exigência para seus filhos gêmeos – que seu sepultamento não seja completado antes que duas cartas sejam entregues. Uma, para um irmão, que eles desconheciam a existência. Outra para o pai, já tido como morto.
Florestas: Enquanto tenta desvendar os mistérios de sua origem, Loup abre uma porta para o abismo onde a memória de sua linhagem está mesclada a amores impossíveis.
Céus: Isolados em uma espécie de bunker, as personagens precisam desvendar um iminente atentado terrorista. Especialistas no assunto, eles também são confrontados com o misterioso desaparecimento de um membro da equipe.
*Colaboração Especial para Culturadoria