O escritor Vander André Araújo lança mais um livro dedicado às crianças neste sábado, 9 de novembro, no Café com Letras
Patrícia Cassese | Editora Assistente
O escritor Vander André Araújo conta que houve um tempo, quando cursava a graduação em Filosofia, mais precisamente, na disciplina de Lógica, em que passava horas estudando a chamada Tabela da Verdade. “Entre as combinações de V e F em tabelas matemáticas, analisando argumentos para chegar a proposições verdadeiras, eu olhava para a TV e para o celular, nos quais choviam notícias falsas, boatos e alarmes”. Muitos desses, lembra, eram prontamente desmentidos por jornalistas, professores e sites criados especificamente para isso. “Tudo em meio a um período pandêmico, quando, na verdade, os esforços da humanidade deveriam estar voltados para a ciência e para a busca de soluções coletivas”, relembra, ao Culturadoria.
Entretanto, ao redor, prossegue, Vander, desgostoso, sentia não haver essa preocupação com a humanidade. “Naquele período, os ‘donos da verdade’ (e do poder) tratavam de inventar mentiras, criar crenças e disseminar essas ideias, gerando pânico, descrédito na ciência e no trabalho daqueles que se dedicavam a estudar o problema (um novo vírus circulando mundo afora) de forma científica. Enquanto isso, outros se aproveitavam da doença para se beneficiar, levando adiante um projeto de governo pautado no ódio e na desinformação”. Nessas horas, uma preocupação acorria à mente de Vander: Como as crianças estavam enxergando tudo aquilo?
Questões
“E, sendo assim, como iriam conduzir o futuro, se suas próprias bases estavam sendo formadas em um presente incerto, repleto de mitos, soluções mágicas e crenças ultrapassadas?”, questiona. Tal qual, prossegue o mineiro, como tais crianças poderiam superar a marca traumática de um período de isolamento, “no qual as informações eram filtradas e compartilhadas conforme interesses particulares”? Ou seja, sem uma visão crítica que permitisse construir uma realidade melhor para todos. Nascia, assim, o embrião de “Pinoquiabo”, o novo livro infantil de Vander André Araújo.
Com ilustrações de Carlos Caminha e editado pela Literíssima, a publicação será lançada neste sábado, 9 de novembro de 2024, no Café com Letras, na Savassi. “A narrativa traz inquietações e poucas perguntas, como as que poderiam surgir de uma criança curiosa, que vive em um ambiente que lhe permite expressar-se e duvidar. Ao mesmo tempo, o leitor não encontrará um gabarito no livro. Fiz questão de deixar essa pequena tarefa para o leitor e espero que ela seja realizada pautada nos princípios da verdade e da ciência”, confessa Vander.
Desafios
A narrativa flagra Antônio, um garoto que cresceu em uma cidade do Cerrado mineiro, e que não demorou a se tornar um “filósofo-mirim”. Certo dia, ele, junto à irmã menor, Rosa, e o pai, viajam de carro para a roça, visitar os avós. E é lá, na Fazenda Água Benta, que um tio arteiro, que estuda botânica, cisma de transformar o sobrinho em um Pinóquio diferentão. Para tal, se vale da planta que é da família Malvaceae, e originária da África: o quiabo. Um aparte: como o livro aborda crenças e mentiras que podem se tornar perigosas quando disseminadas e recebidas de forma acrítica, nenhuma citação a um personagem seria mais apropriada que a feita ao boneco de madeira cujo nariz cresce a cada mentira contada.
Antes de tudo, o autor de “Sobre Mim Uma Sentença” e “Roupa Suja de Inconfidente” confessa que escrever para crianças, neste momento de sua vida, é um enorme desafio. Ele se refere ao fato de lançá-lo após a escrita de três livros direcionados a adultos e que abarcavam temas bem complexos. “Que, ressalte-se, talvez não tenham agradado a muitos”. Isso porque, neles, Vander abordava temas como a marginalização pela loucura, bem como a invisibilização de trabalhadores durante a pandemia e pessoas em situação de vulnerabilidade (tema que, localiza, de certa forma, retorna em “Pinoquiabo”). “Além do amor entre dois homens e questões de racismo e transfobia”, complementa.
Leitor em vista
Perguntado sobre o que sentiu ao colocar o ponto final na narrativa de “Pinoquiabo”, Vander responde: “Sem querer ser pretensioso, espero agora ter alcançado a segurança de quem consegue falar pouco, mas de maneira profunda. E, assim, alcançar um leitor ainda sem preconceitos, em formação e num processo contínuo de aprendizagem, puro. Ou seja, não invadido por essa onda de informações inverídicas que tanto mal tem causado a todos nós”.
Confira, a seguir, outros trechos da entrevista
Mentiras e fake news
O livro ressalta a importância de falarmos a verdade em tempos de fake news. Mas, ao mesmo tempo, no inicinho da narrativa, o pai conta uma “mentirinha” para a mãe. Assim, Vander, qual seria a linha que separa essa, digamos, “pequena mentira” daquela que pode gerar consequências desastrosas?
Bem, levei para o livro a ‘pequena mentira’ do pai, como um propósito pessoal de satisfazer seu desejo, logo de caro. Isso, para que o adulto que acompanha a criança na leitura -ou, quem sabe, o filósofo-mirim que interpreta meu texto – possa se ver ali, naquele momento. E, desse modo, também se autoanalisar. Quantos de nós, a todo momento, afirmamos: “Eu não minto”, “prometo dizer apenas a verdade”, “não compartilho fake news”. No entanto, ao mesmo tempo, adotamos inocentemente a estratégia de criar desculpas para evitar constrangimentos ou mágoas inevitáveis. Ou, ainda, para apoiar um sistema político que privilegie poucos neste universo tão restritivo.
Pequenas mentiras, assim como pequenos gestos de desrespeito à cidadania (Vander cita atitudes como furar fila, não usar a faixa da direita na escada rolante, deixar de comunicar que recebeu troco a mais), podem causar sérios problemas à sociedade. A diferença entre essas mentiras e as fake news está na dimensão do estrago, mas ambas são danosas e devem ser combatidas.
Que memórias da sua infância ecoam no livro?
O livro está repleto de memórias da minha infância. Li recentemente, com enorme prazer, os contos de Lygia Fagundes Telles em seu brilhante livro “Invenção e Memória”. Nele, pude constatar mais uma vez que em toda a nossa escrita ficcional há um pouco da nossa experiência, transcrita das mais afetuosas memórias e escrita mediante nossa subjetividade de escritor.
Podemos, obviamente, e por contrassenso, adicionar algumas mentirinhas para que a história fique mais interessante, já que muito da nossa biografia pode não ser tão bem recebida pelo leitor. Assim, é necessário um trabalho incansável de criação, até com uma visão de marketing (quem ousaria ler isso de um escritor?), para despertar o interesse do leitor disperso, invadido por milhares de informações, que vagueia por esse universo entre o real e o digital.
Você, menino, costumava brincar com o alimento quiabo?
Bem, vou fazer uma confissão: sim, menino, brinquei muito com quiabo fresquinho. Era nossa rica verdura, que completava um prato típico da roça: o frango caipira. Mamãe sempre preparava esse prato com muito esmero. E era de dar água na boca vê-la, ali, à beira do fogão à lenha, contando causos. (NR. a mãe de Vander, professora rural, é, segundo ele, uma grande contadora de histórias, “recheadas de crenças, mitos e superstições”).
Assim, quando estávamos perto dela, surgia a brincadeira de colar os quiabinhos no rosto, sem associar à história original de (Carlo) Collodi (Vander se refere ao jornalista e escritor italiano, autor de “Pinocchio”), mas nos transformando em criaturas divertidas, curiosas e cheias de questionamentos. Interessante foi descobrir que o quiabo, comida dos faraós no Egito, é bastante utilizado como oferenda aos orixás! Já dizia o provérbio africano: “Quem come quiabo, não pega feitiço”. Fatos e verdades que, na minha inocência de adulto, acredito que minha mãe não sabia — e talvez ainda não saiba!
Serviço
Lançamento de “Pinoquiabo” – Vander André Araújo
Quando. Neste sábado, 9 de novembro, a partir das 11h
Onde. Café com Letras (Rua Antônio de Albuquerque, 781, Savassi)