Lançado pela Editora Nós, novo romance da autora “Uma pluma escondida”, lida com a profundidade dos sentimentos humanos de maneira fluida e solar
Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
A italiana Lisa Ginzburg tem um talento especial na concepção dos títulos de seus romances, inventivos e de uma construção imagética poderosa. É o caso de “Cara Paz”, seu primeiro trabalho lançado no Brasil. Assim como o de “Uma pluma escondida”, seu romance mais recente, lançado pela Editora Nós. O título carrega em si um conceito que, em sua simplicidade, consegue traduzir com profundidade o comportamento humano. A imagem desta pluma escondida, com toda a sua leveza e fluidez, é recorrente ao longo do texto, ganhando novas camadas de sentido a cada aparição.
Uma família ideal
“Uma pluma escondida” tem início com a chegada de alguém que é muito aguardado. Uma espera ansiosa. É o jovem Tan, órfão de um pequeno país do leste europeu, a Moldávia. Tan – não por decisão própria – carrega uma espécie de promessa para os seus pais adotivos, um casal italiano. Ele traz da Moldávia para a Itália a possibilidade de uma família, digamos, em sua plenitude. No novo lar, ele descobre ser um estrangeiro não apenas de um país, mas desta ideia preconcebida de família. Acessos de fúria e a incompreensão dos próprios sentimentos – tanto por ele, quanto por aqueles ao seu redor – será uma constante, num processo longo e tortuoso.
“‘Isso é ter um filho? tanta tristeza, dificuldade… era isso que estávamos procurando, e que há dois anos estamos nos esforçando tanto para conseguir?’, ela o ouve sussurrar, um eco de angústia em seu tom que ela nunca percebeu antes.”
Quem parece melhor compreendê-lo é outra jovem personagem. A menina Rosa, filha do casal responsável pela manutenção e pelo trabalho doméstico do casarão principal da propriedade onde vive a família Manera em Quercetana. Entre o fascínio e o assombro, Rosa encontra naquela jovem criança estrangeira uma espécie de espelho. Um espelho que reflete e deforma, que a atrai e a afasta em quase igual medida.
“A única que entendeu que, se ele está sempre tão na defensiva, é porque não tem defesas. Sim, Tan é pele exposta, carne viva, que pode se arranhar com um nada.”
Livros-irmãos
Alguns temas caros à literatura de Lisa Ginzburg seguem presentes neste novo romance, que encontra novos caminhos e nuances para questões como a maternidade, a solidão, o desenraizamento, o feminino e o masculino, as relações de classe e, sobretudo, a orfandade. “Uma pluma escondida” pode ser lido como uma espécie de livro-irmão de “Cara Paz”. Tanto aqui quanto lá, encontramos jovens personagens que carregam no mais profundo de si este sentimento de orfandade, mesmo quando esta não é literal – caso de Rosa, que desde pequena enxerga dentro de si um desarranjo nos sentimentos pela família, sobretudo no relacionamento com a mãe.
“Ela a faz se sentir julgada e nunca realmente aceita, e essa percepção a fragiliza. Porque é sua mãe, caramba – e, em vez disso, é a pessoa que entende Rosa.”
Rosa
Lisa Ginzburg desenha um delicado e poético romance de formação, sobretudo na figura de Rosa. Nosso contato com o intempestivo Tan, com todo o som e fúria que ele carrega dentro de si, se dá, sobretudo, mediado pelo olhar da garota. Entre o final da infância e o início da vida adulta, acompanhamos a personagem num processo de construção de si e a sua relação com o presente, com o porvir e, inevitavelmente, com o passado – este que nunca deixa de estar, em alguma medida, presente. Neste processo, Rosa descobre o afeto, o amor, a perda e o desejo.
“Uma pluma escondida” expõe as ranhuras das relações humanas e familiares. O relacionamento entre pais e filhos, entre marido e mulher, os laços de irmandade que unem pessoas, aparentemente, tão diferentes. Conceitos e certezas são demolidos e reconstruídos na prosa de Ginzburg, num texto que, apesar da profundidade com o qual lida com os sentimentos humanos, é solar e fluido. Como esta pluma que carrega tanto no título, quanto como uma espécie de refrão que permeia o romance, como uma nota musical melódica e marcante. Singular.
Encontre “Uma pluma escondida” aqui.
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)