Espetáculos musicais, Trilogia para a vida ganha publicação em livro pela Editora Ercolano, apresentando protagonistas singulares na luta pelos direitos LGBTI+ no país
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Em junho de 1981, nos Estados Unidos, foram identificados os primeiros casos de uma doença misteriosa, que afetava jovens até então saudáveis. Atacando o sistema imunológico, o vírus tornava os acometidos completamente vulneráveis ao desenvolvimento de doenças oportunistas. Não demorou muito para que os primeiros casos do HIV fossem registrados no Brasil, em 1982. Se, primeiro, estes casos foram identificados em grandes cidades ou entre indivíduos que retornavam de viagens ao exterior, rapidamente o vírus tornou-se presente em todo o território nacional. De lá pra cá, um longo caminho foi percorrido no país tanto no combate ao HIV e à aids, quanto na luta pelo direito à cidadania dos seus portadores. Um caminho marcado por muitas perdas, mas também conquistas – muitas delas resultado de políticas públicas de saúde que tornaram o Brasil referência mundial no tratamento humanizado e gratuito por meio de seu Sistema Único de Saúde.
Primeiramente, são incontáveis as histórias, públicas e privadas, envolvendo a presença do HIV no país desde a década de 1980. Algumas delas foram encenadas pelo Núcleo Experimental de Teatro em três espetáculos musicais que, agora, ganham publicação em livro pela Editora Ercolano: “Lembro todo dia de você” e “Brenda Lee e o Palácio das Princesas”, ambos com texto de Fernanda Maia e música de Rafael Miranda, e “Codinome Daniel”, com texto de Zé Henrique de Paula e música de Fernanda Maia. Juntos, eles formam a “Trilogia para a vida”, um conjunto sensível e dedicado de histórias que apresentam um olhar múltiplo para experiências LGBTI+ marcadas pelo HIV no país de 1980 até os anos 2000.
Lembro todo dia de você
Antes de tudo, três figuras reais norteiam as narrativas dessa trilogia. Rafael Miranda, compositor musical de “Lembro todo dia de você”, inspira o protagonista deste primeiro espetáculo, Thiago. Dois personagens públicos e emblemáticos da luta em defesa do direito à saúde e à cidadania dos portadores do HIV e da aids em nossa história recente são retratados nos outros dois textos: Brenda Lee, no espetáculo que carrega seu nome, e Herbert Daniel, em “Codinome Daniel”.
Thiago, inspirado em Rafael, é um jovem num processo tumultuoso de descoberta e auto-aceitação da doença. Brenda Lee ficou conhecida como “anjo da guarda das travestis” ao acolher em sua casa travestis e mulheres trans. Uma camada da população brasileira historicamente relegada às margens: do sistema de saúde, do poder público e do afeto fam. Herbert Daniel chegou a ser o revolucionário mais procurado do país, passando parte significativa de sua juventude lutando contra o regime militar – ao lado de companheiros como Dilma Rousseff e Carlos Lamarca. A luta contra um regime autoritário imposto não foi sua única frente: ele também lutou contra a homofobia. Ou seja dentro dos próprios movimentos de esquerda, inclusive – e contra o preconceito a respeito da doença, ao ser diagnosticado portador do HIV no retorno do exílio na França.
Codinome Daniel
É marcante como, percorrendo personagens e cronologias diferentes, essa “Trilogia para a vida” consegue formar um panorama complexo e pungente da sociedade brasileira. Frente à uma doença que, desde que surgiu, não abandonou o nosso imaginário social. Se tal imaginário segue marcado muito fortemente pelo medo e pela desinformação. Contudo o trabalho do Núcleo Experimental de Teatro é um gesto político necessário e urgente. Nesse sentido ao apresentar um olhar afetuoso, marcado pela esperança, pelo amor e pela luta.
A escolha da construção dos textos enquanto musicais é uma aposta ousada e acertada. Resultando em construções narrativas marcadamente poéticas, mesmo nos momentos não cantados, numa leitura que flui num compasso musical que emociona e surpreende. Cada protagonista da “Trilogia para a vida” carrega todo um universo próprio dentro de si. Em conclusão, singulares em suas dores e lutas, Thiago, Brenda e Daniel abrem possibilidades de encontro e reconhecimento frente a tantas histórias invisibilizadas, ontem e hoje, na história brasileira. Seja na luta pelos direitos LGBTI+, no combate frente ao preconceito contra as pessoas com HIV. Ou na luta pelo simples fato de existirem e resistirem enquanto cidadãos.
“Brenda Lee e o Palácio das Princesas”
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)