
A artista Thereza Portes, de iniciativas que espraiam afeto e valorizam memórias (Guilherme Silva)
Em cartaz no Sesc Palladium, a mostra “Memória das Histórias Plantadas” revela facetas da artista, idealizadora do projeto Mesa de Thereza
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Quem acompanha com olhos atentos os projetos que, por meio de iniciativas particulares, movimentam afetos e espraiam gentileza pela cidade, certamente já ouviu falar da Mesa de Thereza. Idealizada pela artista plástica Thereza Portes, a ação teve início na casa da família dela, localizada na rua Padre Belchior. Thereza se lembra que, em determinado momento, a via foi tida como “a mais feia da cidade”. No entanto, para ela, sempre foi um lugar relacionado a momentos felizes. “Eu nasci ali, era a casinha na qual eu, meus pais, meus avós, meus primos, morávamos…”. Assim, em 2013, ela decide montar uma grande mesa na rua e, daí, convidar vizinhos e transeuntes para uma experiência comunitária: um café da manhã.

Assim, um movimento permeado pela delicadeza, boa conversa, um bom café coado na hora e muitos quitutes, replicando uma forte tradição das casas mineiras. Não tardou para que a ação se tornasse conhecida. Mas Thereza queria mais e, desse modo, veio o pensamento de convidar os participantes a bordarem palavras e memórias na toalha que cobria a mesa. Naquele momento, nem ela mesma poderia imaginar que a iniciativa germinaria a ponto de ser replicada em outros estados do Brasil e mesmo em outros países da América Latina.

Neste ano, a ação atinge outro patamar ao ser convidada para integrar o projeto Desvios, do Sesc Palladium. Assim, quem visita o espaço cultural, localizado no Centro da cidade, adentra um universo tão múltiplo quanto encantador – e plural. Trata-se da mostra “Memória das Histórias Plantadas”, inaugurada no dia 8 de novembro.
Proposta

Thereza Portes conta que o projeto Desvios, para o qual foi convidada pelo Sesc Palladium, não se configura como uma ocupação aos moldes tradicionais, como os de uma galeria de arte. “Assim, o Sesc me convidou para fazer uma intervenção no espaço. E me deram total liberdade, pensando muito ideia da mesa de café e do bordado, porque queriam que houvesse uma interação com o público. Mas pontuaram que eu poderia ultrapassar o lugar só da mesa, e, desse modo, incluir também um pouco das minhas outras experiências, um outro lado que algumas pessoas não conhecem, da pintura, das minhas pesquisas”. Para tal, Thereza convidou o artista Marco Paulo Rolla para ser o curador. “Expliquei um pouco da história (das ações) e ele entendeu que, desse modo, eu tinha que entrar com tudo”.

Varal de toalhas
Desse modo, quem adentra o Sesc Palladium pela avenida Augusto de Lima se depara com uma espécie de varal de toalhas de mesa, suspensas, e que foram bordadas em diversos momentos e locais – até mesmo em outros países. São bordados feitos por pessoas que já são enfronhadas no ofício, mas também por diletantes.
Porque é preciso entender: a atividade capitaneada por Thereza não acontece com o sentido de gerar um produto comercial, de venda. Ou seja, não há preocupação com a forma, mas, sim, com o conteúdo. Desse modo, desenhos, palavras e frases impressas nessas toalhas formam um estupendo e potente relicário. São memórias, histórias, afetos e – por que não? – dores, que estão compartilhadas ali. O impacto é encantador, mas vale um conselho: vá com calma, reserve um tempo na agenda, para prestar atenção aos detalhes. Eles fazem toda a diferença.
Histórias
E como nasceu a ideia do bordado? Thereza conta que, à medida que a iniciativa da mesa de café avançava, as pessoas, solidárias, passaram a lhe presentear com xícaras, bem como canecas e copos. Não raro, nestes momentos, as pessoas aproveitavam para contar as histórias de cada louça. “Então, o bordado nas toalhas tem início também com o propósito de registrar um pouco dessas histórias que eram compartilhadas comigo, por meio da doação das xícaras”. Feito o convite, as pessoas começaram a bordar essas memórias nas toalhas. O material (agulhas e linhas), ela própria disponibiliza.

Várias frentes
Não tardou e o projeto começou a ser replicado em outros espaços, como no Hospital das Clínicas, onde Thereza coordena um projeto de arte, o Janela da Escuta. “Começamos a bordar nas macas. Desse modo, subvertendo um pouco o lugar da doença, gerando arte. Assim, eu bordo com as mães que aguardam o atendimento dos filhos”. Logo, o bordado começou a acontecer também em quilombos urbanos. Na sequência, um grupo do Rio Grande do Sul veio aprender com Thereza sobre o projeto. “Foi, então, implantado lá e, assim, só foi crescendo. Hoje, são várias vertentes, como a da saúde mental, mulheres vítimas de violência e refugiados”, elenca.
E, assim, formou-se uma rede, a Il Filo. “Hoje, já somos muitas (mulheres a bordar). A gente está no Uruguai, na Argentina, no Rio Grande do Sul (em Porto Alegre e na cidade de Montenegro), na Bahia, no Rio de Janeiro, com os refugiados… Na mostra do Sesc, algumas toalhas vieram de fora, então, tem, por exemplo, uma do Uruguai…”. Na mostra no Sesc, a primeira toalha disponibilizada por Thereza para ser bordada está presente, esticada no alto, sobre a escada rolante. “É a minha matriz”, brinca ela, chamando a atenção para o quanto esta toalha, em particular, carrega bordados – e, assim, histórias.
“Livro Vivo”
Thereza ressalta que a maioria dos bordados é feito por mulheres. “Mas, veja, não quer dizer que não tenha homens (nas ações de bordado)”. Perguntada sobre quantas toalhas bordadas já foram geradas a partir do projeto, ela diz ser atualmente guardiã de dez. No Uruguai, por exemplo, ela estima já terem umas seis. Na exposição no Sesc, claro, não estão todas. “Não vieram, por exemplo, as da Argentina”.
Uma das que chamam atenção é a oriunda do projeto “Livro Vivo”, da UFMG. A história é das mais ricas. Por meio da iniciativa, pacientes da saúde mental foram instigados a, voluntariamente, contar histórias de vida. “E aí, um dos usuários fez da toalha o livro dele. Então, escreveu uma história única, e, depois, nós a bordamos, por cima (foto abaixo)”. Essa tolha, em particular, conta Thereza, está sob a guarda da UFMG, mas integra a mostra do Sesc Palladium.
No Quilombo Manzo
Assim como também estão disponíveis ao olhar do público que for ao Sesc Palladium duas toalhas bordadas no Hospital das Clínicas. “Uma, desde 2013, e outra, desde 2017. Elas ficam em cima das macas. Já as mães, no entorno. E, ali, a gente vai costurando as nossas histórias”. Uma outra toalha de mesa que emociona Thereza é que vem sendo bordada em chás com as matriarcas de quilombos, em particular, na Festa do Quilombo Manzo, que acontece no espaço localizado na zona leste da capital mineira. “Já tem dez anos que estamos bordando a peça, que também vai a outros quilombos – recentemente, por exemplo, ela foi ao Quilombo dos Pinhões, em Santa Luzia. Então, é um registro delas (matriarcas). Eu me sinto apenas como guardiã. Desse modo, não faço café ou chá com ela a não ser que esteja em companhia dos moradores dos quilombos”.
A exposição no Sesc também tem um work in progress, ou seja, uma toalha em processo de bordado. “Na verdade, vamos dar a volta no quarteirão (onde o equipamento se situa), promovendo cafés, em uma mesa que pretende se comunicar com os vizinhos também”. Trocando em miúdos, a exposição no Sesc Palladium dá sequência ao propósito da Mesa de Thereza, que abarca o o ato de tomar café, degustar delícias, conversar, bordar. No cômputo geral, conversar, conviver e, de quebra, deixar uma marca, uma história, registrada. Num sentido mais amplo, uma ação de ocupação do espaço público.
Além da mesa
Se a Mesa de Thereza e o bordado na toalha já são projetos conhecidos de Thereza Portes, o mesmo não pode ser dito das outras vertentes artísticas dela. “Tenho formação em pintura, e também sou professora”, conta ela, que foi instigada por Marco Paulo Rolla a mostrar essas outras facetas no Sesc Palladium. Assim, na entrada pela rua Rio de Janeiro, estão vários quadros dela, inclusive alguns mais recentes, feitos a partir de tintas naturais.

“Há muito tempo venho pesquisando as tintas naturais, sempre com o desejo de ter um trabalho autossustentável”, conta ela. Com a pandemia da Covid-19, este movimento ganhou um impulso. “Aquela coisa de a gente não poder sair, falei: ‘Então, chegou a hora de fazer (as tintas). E começou com tudo que eu tenho plantado no meu quintal”. Assim, há tintas feitas a partir do açafrão, hibisco, urucum, pitanga, beterraba, jenipapo, caroço de abacate ou folhas de mangueira (“que dá um amarelo lindo”).
Conversa com o tempo
Thereza conta que, neste momento, a pesquisa dela está centrada em como fixar a tinta. “Assim, vou testando o alho, a babosa… A minha casa virou um laboratório. E esses quadros que estão aqui, no Sesc, podem ser que durem ou que a coloração das telas vá se alterando. No caso da tinta natural, é isso, a gente tem que lidar com o tempo dela”. Em janeiro, aliás, ela deve ministrar uma oficina de tintas naturais aberta ao público. Desse modo, uma espécie de varal de plantas foi montado no Sesc, para que as folhas passem a secar. “Quanto mais secas, mais potência vai ter a tinta. Ou seja, toda a exposição tem essa conversa com o tempo”.

Ela conta que também tem erva de passarinho, que é uma tinta que está experimentando. “Já estou impressionada com a potência dela. Tem também as misturas, como a do jenipapo com folha de mangueira”.
Mural de amostras
Do mesmo modo, quem quiser, também pode levar uma amostra da planta preferida para colocar no mural, junto a uma pequena explicação. “Na primeira semana, tive que tomar o maior cuidado para não acabar o espaço todo de uma vez (risos). Porque a proposta é ir preenchendo o mural aos poucos. E contar com as pessoas que moram ou trabalham no entorno do Sesc e outras regiões do centro da cidade (para levar as amostras), e, do mesmo modo, com as surpresas que vão aparecer (nesta jornada)”.

Neste sentido, Thereza também conversou com os funcionários do Sesc, instigando-os a levar amostras. “E um deles trouxe uma amostra da planta com a qual a mãe, contou ele, fazia uma rapadurinha para os filhos. Na verdade, trata-se de uma planta que é usada para matar vermes. Então, estou recolhendo um pouco essas histórias de afeto das pessoas com as plantas. Porque a verdade é que todo mundo tem uma plantinha. Você passa em uma loja, tem uma plantinha, nos prédios, idem. Já descobri que, no quarteirão de cima aqui, da rua Rio de Janeiro, o porteiro coloca um monte de plantas no tronco de uma árvore”. Outra funcionária, por sua vez, levou uma amostra de Rabo de Macaco, cuja muda ganhou por meio de uma senhora com a qual começou a conversar no ônibus.

Zé Luzia
Recentemente, Thereza Portes ouviu da filha: “Mãe, agora você só fala desse Zé Luzia”. Ela se referia ao jardineiro da Faculdade de Medicina que acabou se tornando um colaborador assíduo tanto do mural quanto das pesquisas da artista. “É uma pessoa que tem muito conhecimento, e foi me contando histórias das plantas da Faculdade de Medicina, como a parreira do Ambulatório Borges da Costa. Inclusive, ele tem ciúmes das plantas, conta que se uma mão ruim pegar, ela vai morrer. E aí, eu vou recolhendo essas histórias de afeto”.

Aliás, Thereza conta que já existe uma pessoa registrando as histórias, tanto as bordadas quanto as das plantas. “Vamos ver se, no futuro, a gente consegue fazer uma publicação. Inclusive, estou guardando os papeizinhos que ganho, tudo isso, para mim, está sendo muito precioso”. (na foto abaixo, vasos que foram dados por Zé Luzia a Thereza Portes)

A lua marcada em xícaras
Como dito, no curso da Mesa de Thereza, a artista foi ganhando várias xícaras. “Já ganhei mais de 600 xícaras”, conta ela, que já tinha um acervo próprio. Com a pandemia, claro, a iniciativa teve que ser interrompida. “Naquele primeiro momento, me desesperei. Falei: ‘Gente, acabou! Nunca mais vou poder fazer café na rua”. E assim, nos dias de isolamento, presa, em casa, ela começou a marcar as luas da pandemia nas xícaras, por meio da borra do café. “Cada dia que eu tomava um café, eu usava uma xícara e replicava o formato da lua com a borra. Então, foram mais de 700 xícaras (alusivas aos dias de quarentena). Só que, claro, não tinha a mínima condição trazê-las para o Sesc. Isso é para uma outra exposição”.
Como o curador Marco Paulo Rolla não queria deixar de mostrar esta iniciativa na ocupação de Thereza no Sesc, há uma vitrine, tipo uma estufa, com algumas das xícaras. “Então, aqui tem o ciclo da lua: cheia, decrescente, nova, crescente… Até chegar na cheia de novo. Mas assim, se eu fosse colocar todas que tenho no chão… Aliás, tenho até uma foto de todas juntas. Ocorre que não quero desmanchar as luas, não sei como é que eu vou fazer (risos). Eu não quero lavar as 700 xícaras”, diverte-se ela.
Copinhos de bambu
Com os respiros que foram aparecendo na pandemia, em função do avanço da vacinação, Thereza pode retomar a realização do café. Mas, por conta dos cuidados ainda vigentes, ela não quis voltar com as xícaras de porcelana. “Fiquei com medo. Então, optei por copinhos de bambu, material que pode compostar. E comecei a pegar escritas da mesa e fazer carimbos, para imprimi-las nos copinhos. Assim, tem uma frase que é das mulheres do MST: ‘A mulher larga o fogão para fazer revolução’. No Dia Internacional da Mulher, fiz tudo relacionado à temática, como ‘Jesus é feminista'”.
Ficaram tão fofos que, hoje, os copinhos dão até briga. “Tem gente que junta os copinhos e fica esperando novos modelos. Perguntam: ‘ Vai ter outro diferente, hoje?'”.
Uma rosca de oito metros
Em agosto deste ano, ao defender a dissertação de mestrado na Guignard, e na qual ela revela as historias que alimentaram a mesa de café que promove, Thereza Portes resolveu fazer uma rosca de oito metros, para compartilhar na rua. Mas como assim, uma rosca de oito metros? Bem, na verdade, dez roscas de 80 cm cada, emendadas. “Tirei as beiradas e as emendei de um jeito que não dava para ver. Ficou todo mundo intrigado, foi muito legal”. A rosca foi feita no forno à lenha, em Milho Verde.
Mais tarde, Thereza fez uma versão da rosca em bronze, e a colocou sobre a pedra na qual a avó dela amassava a iguaria. A receita da rosca também já foi bordada em toalha. Recentemente, a artista realizou uma mesa para comemorar os seis anos do Armazém do Campo. “Então, o trabalho vai conversando com os movimentos sociais, com grupos dos quais eu faço parte, que contribuo”. A adesão é tal que Thereza revela que, vez ou outra, ela não precisa nem oferecer o café. “As pessoas querem fazer tudo, chegam com o pão quentinho, que acabou de fazer, embrulhado no pano, e entregam. É impressionante como as pessoas gostam de participar. E é ótimo, porque é um trabalho totalmente relacional. A pessoa quer fazer, quer servir”.
Paraíso particular
Uma última seção da mostra “Memória das Histórias Plantadas” localiza-se próxima às toalhas suspensas, ou seja, no acesso do Sesc pela avenida Augusto de Lima. Trata-se de um herbário do quintal de Thereza Portes. “É quase um inventário. Meu pai faleceu na pandemia, a gente naquela loucura de ficar em casa, angustiado. Então, comecei a recolher as histórias do meu quintal. Assim, tem a roseira que veio lá do lugar no qual meu avô nasceu, Rosário de Minas. (Tal qual) O jasmim da casa da rua Padre Belchior, sob o qual nossos umbigos foram plantados. Então, é um inventário”.

Thereza Portes trata de ter as mudas de todas as plantas que fazem parte do rol de afetos dela. “Porque se um dia eu sair daquela casa, posso transportar o meu jardim, com as mudas que eram dos meus avós, dos meus bisavós, dos meus amigos. Porque tem a coisa de, além da história que carregam, a muda ser mais resistente, né? Caso você vá replantando. Aí, lá embaixo é um herbário íntimo. É todo do meu quintal, à exceção de uns acréscimos do senhor Zé Luzia. ‘Agora essa você vai plantar na sua casa’, ele fala comigo. Aí começou a me dar uns vasinhos também. Ele é uma graça!”.
