
À esquerda, a capa do livro; à direita, em sentido horário, a partir do alto, algumas das escritoras presentes na obra: Eliana Alves Cruz (Marta Azevedo/Divulgação), Cidinha da Silva (Nuno Biazzo/Divulgação), Dia Nobre (Stella Paiva/Divulgação) e Carola Saavedra (Luiz Pinto/Divulgação)
O lançamento da coletânea “O Dia Escuro” e alguns outros exemplos da literatura do gênero terror que têm autoria feminina
Carol Cassese | Especial para o Culturadoria
Lançamento recente da Companhia das Letras, o livro “O Dia Escuro: Contos Inquietantes de Autoras Brasileiras”, reúne 20 textos de autoras de várias regiões do país – Minas está representada, por exemplo, por Cidinha da Silva e Marcela Dantés. Organizado por Fabiane Secches e Socorro Accioli, o volume também traz histórias de terror assinadas por outros nomes de ponta da cena literária feminina brasileira contemporânea, como Carola Saavedra, Eliana Alves Cruz, Maria Valéria Rezende e Micheliny Verunschk, para citar algumas. Ou a saudosa Lygia Fagundes Telles (1918 – 2022).
De acordo com material da Companhia das Letras, “O Dia Escuro” tenta responder à pergunta: “O que nos aterroriza hoje?”. Do mesmo modo, “levar o debate sobre terror latino-americano a um novo patamar”. Na apresentação, a publicação optou por uma frase do conto de Carola Saavedra como representativa para a coletânea: “Será que é possível escrever um conto de terror quando a realidade parece um conto de terror?”. Questão que de pronto convida também ao leitor a refletir sobre o modo com o qual as histórias de terror dialogam com a vida cotidiana nos dias atuais.
Ramificações
Um outro ponto destacado pela casa editorial é que nem todas as escritoras convidadas estavam familiarizadas com a temática terror. No entanto, ainda assim, toparam prontamente o convite, elaborando textos que, mesmo pactuados com a premissa sugerida pela Companhia das Letras, acabam por também abarcar várias outras reflexões, inclusive, de âmbito social. O que também não é novidade em se tratando do gênero literário propriamente dito.
Presença feminina
Apesar de muitos associarem o horror (ou terror) com perspectivas masculinas, no curso do tempo, nomes como Ann Radcliffe, Anne Rice e Mary Shelley trataram de ratificar a ótica feminina neste escaninho. Que, aliás, e só por curiosidade, está em alta em face do sucesso de um filme: “A Substância”, da francesa Coralie Fargeat. Um dos destaques de 2024, o filme estrelado por Demi Moore evidencia como a mídia (e diversas parcelas da sociedade) reforça a reificação do corpo feminino e aborda a juventude da mulher como um valor imprescindível. Os elementos mais bizarros do filme reforçam a crítica promovida por Fargeat, que escancara muitos dos despropósitos do discurso patriarcal.
Livros
Com a proximidade do Halloween, decidimos selecionar algumas obras literárias que dialogam com o gênero horror, mas que também se debruçam sobre questões sociais. Caso do já citado “O Dia Escuro”. Mas, sim, tem muito mais – e, na verdade, certamente a lista poderia ser ainda mais extensa, já que, felizmente, cada vez mais as mulheres vêm ganhando espaço na cena cultural.
“O dia escuro: contos inquietantes de autoras brasileiras” – Organizado por Fabiane Secches e Socorro Acioli
Nosso primeiro título é a já mencionada coletânea lançada pela Companhia das Letras. Na apresentação, Fabiane Secches lembra que foi a partir do conto “O Dedo”, de Lygia Fagundes Telles, que o livro passou a ser estruturado. E acrescenta: “Os contos aqui reunidos são bem diferentes entre si, alcançando sua própria dimensão estética, psíquica, política. O que há em comum entre todos é a certeza que fica depois da leitura: precisamos tanto de luz porque também somos feitas de sombras”.
Ela esclarece, ainda, que o título da coletânea emergiu do conto de Natércia Pontes, “uma boa imagem para representar a atmosfera que nos aguarda nas páginas a seguir”. E emenda lembrando que o conforto possível é de que, ao menos neste livro, tudo está no campo da ficção. Ah, sim. O mencionado conto “O Dedo” é o que abre o desfile de contos. Nele, a narradora relembra o dia em que, caminhando pela praia, se deparou com um dedo, ostentando um anel de esmeraldas.
“A Água me Contou um Segredo”, de Cidinha da Silva, lembra o horripilante crime contra o Índio Galdino para falar de um homem acorrentado em um poste, que anseia por um tiro de misericórdia. Já em “Gilda”, Marcela Dantés fala do convite que uma adolescente recebe da mãe no momento em que completa 16 anos. Uma viagem a duas, cujo desfecho é permeado pelo mistério.
“Rinha de Galos” e “Sacrifícios Humanos”, de María Fernanda Ampuero

Um nome que vem se destacando na América Latina é o da equatoriana María Fernanda Ampuero, autora das coletâneas “Rinha de Galos” (2021) e “Sacrifícios Humanos” (2023), publicadas no Brasil pela Editora Moinhos. Narradas primordialmente por personagens femininas, as histórias de Ampuero tratam de diversas mazelas sociais, como o abuso sexual e a exploração do trabalho doméstico. A partir de acontecimentos infelizmente banalizados pela sociedade, a autora cria atmosferas ainda mais sombrias, evidenciando o horror das violências cotidianas.

No ano de 2018, “Rinha de Galos” entrou para a lista das melhores obras do ano pela edição espanhola do The New York Times. Além disso, Ampuero entrou para a lista das 100 autoras mais influentes da América Latina pelo jornal El Telégrafo.
“Sacrifícios Humanos”
O conto “Irmãzinha”, que integra “Sacrifícios Humanos”, é um exemplo de narrativa que explora temas bastante discutidos na contemporaneidade, como a gordofobia e o preconceito estético de forma mais ampla. A trama gira em torno de duas primas que enfrentam transtornos alimentares e são menosprezadas pela família. A chegada de Mariela, uma nova colega misteriosa e aparentemente deslocada, altera drasticamente a vida das meninas, o que desencadeia uma série de eventos que tornam a convivência entre as primas ainda mais perturbadora.

Destacamos aqui um dos trechos presentes na orelha desse mesmo livro: “Em nosso mundo, as bestas são os próprios humanos, que põem a aterrorizar uns aos outros, evidenciando as desigualdades, o desprezo que mantemos por nós mesmos e a violência que instauramos como um ato cotidiano”. Dessa maneira, percebemos que a obra de Ampuero reforça a percepção de que os seres mais aterrorizantes são os próprios humanos.
“Distância de Resgate”, de Samanta Schweblin
Relançado em 2024 pela editora Fósforo, “Distância de Resgate” traz a assinatura da argentina Samanta Schweblin, autora de romances e contos. Alguns classificam a obra como uma novela de suspense psicológico, ao passo que outros críticos acreditam que a atmosfera da narrativa dialoga com vertentes da literatura de horror.

De qualquer maneira, são muitos os incômodos que acompanham a leitura da história, que se passa no interior da Argentina e é centrada na relação de Amanda com sua filha, Nina. Logo descobrimos que o enigmático título se refere ao limite de proximidade que uma mãe deveria manter em relação ao filho para protegê-lo de perigos iminentes. Nesse sentido, “Distância de Resgate” também aborda as intermináveis cobranças dirigidas às mulheres na sociedade patriarcal.
Méritos
Um dos principais méritos do romance é justamente a maneira que a autora consegue unir o tema da maternidade com a questão dos perigos da contaminação ambiental, amplamente discutida na contemporaneidade. Ressaltamos que a obra apresenta um trabalho estético inventivo, já que toda a história é contada a partir de um diálogo da protagonista com um personagem cuja identidade, a princípio, desconhecemos.

Em 2017, “Distância de Resgate” foi finalista do prêmio Man Booker International e, posteriormente, ganhou adaptação para o cinema pela diretora peruana Claudia Llosa. Outras obras de Schweblin marcam presença nas telas: o conto “Nada Disso Tudo”, por exemplo, inspirou um curta homônimo, que chegou a participar da competição oficial do Festival de Cannes.
Numa entrevista ao periódico Quatro Cinco Um, em 2023, Schweblin refletiu sobre a aproximação de figuras do sexo feminino com tipos específicos de violência. “Eu me pergunto se as mulheres não estariam mais próximas do que os homens de alguns tipos de violência. E se isso não influencia diretamente o que ocorre na nossa literatura”, argumentou. “Independentemente do que fizermos, não é tão fácil desvencilhar do contexto em que está imersa a América Latina”, acrescentou a autora.