
A Mostra de Cinema de Tiradentes é um exemplo da democratização do acesso ao cinema no Brasil - Foto: Jackson Romanelli/Divulgação
Que bela oportunidade tiveram os estudantes que fizeram o Enem neste domingo, hein! Sim, nos dias de hoje, chega a ser um privilégio ter que pensar sobre no papel que o cinema desempenha na sociedade. Sem isso, seria muito difícil chegar a qualquer reflexão sobre democratização do acesso. Outro ponto de extrema importância, sobretudo em 2019.
São tantas possibilidades para se abordar o tema da redação do Enem deste ano. É exatamente isso que faz desta uma escolha muito rica. Para começo de conversa, é também um exercício difícil pois é preciso um certo distanciamento do lugar comum. Embora seja espaço de diversão, cinema não é somente entretenimento. Por isso é importante refletir sobre a democratização do acesso.
Papel da arte
Ao pensar sobre o tema escolhido para a redação do Enem 2019, volto no tempo em uma semana. Era o último domingo de outubro de 2019, fim da temporada do espetáculo ‘Antes que a definitiva noite se espalhe em latinoamérica’. Déborah Bloch, a atriz que faz a professora na série Segunda chamada, respondeu uma pergunta sobre como tem sido complexo ser artista no Brasil de hoje.
“Quando a gente tem pensamento crítico, quando os artistas falam, e refletem o que acontece no país na sociedade, isso ameaça. Um povo ignorante é um povo que interessa, pois é facilmente manipulado. É muito triste que gente esteja vivendo isso. (…) Não existe uma civilização sem educação, sem cultura e sem arte”, disse Deborah Bloch em BH.
Não há duvidas que esteja difícil. Isso não apenas porque os meios de financiamento das artes estão cada vez mais complicados. Está duro também porque todo mundo que se envolve com cultura hoje parece estar em imerso em uma cruzada de ter que provar o quanto o acesso a esse tipo de bem gera benefício ao ser humano. Estamos falando de desenvolvimento de habilidades mais ligadas ao ser do que ao ter. E isso não é tangível e nem parece interessar aos capitalistas de plantão. O que me parece um grande equívoco.
Cultivo de sensibilidades
Mas como o cinema cultivaria, por exemplo, sensibilidade e pensamento crítico? Simples, gerando empatia com o que você vê na tela. Criando estímulos para você. Por exemplo, Coringa é um dos piores vilões do universo do entretenimento. Certo? Mesmo assim, quando você a história dele na tela – e pensa no personagem – consegue entender minimamente o que levou aquele homem a se transformar em um assassino. Só de refletir sobre a trajetória do personagem e criar uma opinião sobre ele, você já contribuiu com o desenvolvimento do seu pensamento crítico. E foi por meio do que? Da empatia.
Esse exercício cabe tanto em filmes que são campeões de bilheteria como Vingadores – Ultimato, O Rei Leão até produções independentes. Veja o caso de Bacurau, do diretor Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. É um longa que fala de tanta coisa que cada espectador sai do cinema com uma interpretação. No entanto, há, em comum, a ideia de que a cultura é fundamental para o fortalecimento de um povo.
Ah você acha que as comédias ficam fora disso? Não se engane. Minha vida em marte, o campeão nacional no ranking de bilheteria em 2019, faz rir com uma reflexão sobre as aflições da mulher contemporânea. Mas, convenhamos, ter acesso ao cinema não é para qualquer um. Produzir é caro e o acesso também é caro. Tanto para ver nas salas tradicionais ou mesmo na sala da sua casa.

Cena de Bacurau. Foto: Victor Jucá/ Divulgação
Democratização
É aí que entra a conversa sobre democratização proposta pelo Enem. Ou seja: como fazer com que mais gente tenha acesso à oportunidade de pensar sobre a diversidade de questões que esta arte nos oferece. Aí, não é uma questão fechada. Sobram perguntas.
Cinema faz parte de uma indústria e, portanto, há o interesse do lucro. O setor audiovisual movimenta cerca de R$ 20 bilhões por ano, o que representa 1,67% do PIB. A cada R$ 1 investido, o retorno é de R$ 2,60 em tributos. Os recentes anúncios de cortes de editais e aniquilação da Agência Nacional do Cinema levam a crer que o desenvolvimento do pensamento crítico incomoda mais do que o que a economia é capaz de girar.
Ou seja, a democratização do acesso ao cinema no Brasil não passa somente pela esfera da produção.
De quem seria o papel de fomentar o acesso? Do mercado? Do estado? São questões bem difíceis e que não parece haver interesse em se resolver. Acredito que isso tenha a ver com a dificuldade em tangibilizar os benefícios. Ou melhor, talvez isso seja até interpretado mais como uma ameaça do que como um ganho.
Sendo assim, até que ponto interessa às esferas governamentais uma sociedade com pensamento crítico? A democratização do acesso ao cinema do Brasil está diretamente ligada a esta pergunta. Que bom que, de certa maneira, foi esse desafio apresentado aos estudantes de todo país por meio do Enem. Na minha opinião, a arte – seja no cinema, no teatro, na música, na galeria – é o único caminho possível para nos salvar da barbárie. Mas, para isso, é preciso que o acesso seja cada vez mais amplo.