Curadoria de informação sobre artes e espetáculos, por Carolina Braga

Cine Splendid: uma conversa crítica sobre a peça e seus significados

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A sessão de estreia de Cine Splendid me despertou mais reflexões sobre o papel da crítica de teatro hoje do que propriamente pensamentos relacionados ao que a peça propõe. Isso porque saí com a certeza de não ter gostado do que vi. Esse “não gostar”, teve um peso.

Pensei se deveria publicar algo ou apenas ignorar. Achei que se fizesse isso não estaria cumprindo uma das funções que acredito ser do jornalismo cultural. Qual o caminho? Prefiro me referir às críticas que escrevo no Culturadoria como impressões porque sei que se tratam, sempre, de um ponto de vista.

E no caso desse ponto de vista ser negativo, o que fazer?

Decidi entrar em contato com a equipe de criação da peça e propor um texto dialógico. O que lerá a seguir são as minhas impressões comentadas e/ou contra-argumentadas pelos criadores de Cine Splendid.

O resultado dessa experiência também me faz refletir. Muitas (muitas mesmo) justificativas apresentadas pela equipe nem passaram pela minha cabeça no momento em que vivia a experiência da peça. São informações que não chegaram até mim. Sim, uma espectadora comum. Será que fui desatenta? Não acho.

É curioso pensar que nem sempre o que se deseja comunicar é, ao final, o que chega a quem recebe. Esse vácuo forma os ruídos que interferem na experiência. Bem, é a reflexão que faço.

A crítica dialógica uma experiência nova para todos nós. Veremos onde poderemos chegar com essa conversa crítica.

ALERTA DE TEXTÃO MAS VALE A PENA 😉

Cena de Cine Splendid. Crédito: Luiza Palhares

IMPRESSÕES CAROL BRAGA SOBRE CINE SPLENDID

Minutos antes da peça, enquanto lia o programa de Cine Splendid, pensava sobre as ditaduras na América Latina. Foi o material gráfico que despertou isso. Foram muitos regimes assim e talvez a história ainda não tenha tido tempo suficiente para a compreensão plena de cada um deles e do todo. Que bonito a arte contribuir nesse sentido.

Tal reflexão faz com que dê ainda mais importância para a abordagem de um caso específico do Paraguai. Sim, precisamos combater o distanciamento que o Brasil se impôs dos vizinhos latino-americanos. Bem, tudo isso pensei antes de entrar no teatro.

O mote do espetáculo com texto de Sara Pinheiro, dirigido por Pablo Lamar e Ricardo Alves Jr. parte de um episódio que marcou chamada era Stronista no Paraguai. Em outras palavras, a ditadura comandada pelo general Alfredo Stroessner entre 1954 e 1989. Já teve livro e tudo sobre o caso do Cine Splendid.

Ler o programa é algo importante para o espetáculo em questão. Isso porque ao entrarmos no teatro, percebemos claramente a temática que norteia o texto. A crítica à suposta banalidade – ou paz – que a população civil engoliu durante os anos de tormento. Ainda assim sobram lacunas sobre a história que se conta.

Você já teve a experiência de conversar com alguém que conta o caso pela metade mas não te dá elementos suficientes para tal? Não acho que lacunas sejam problemas na arte. São até desejáveis a menos que a obra ofereça elementos suficientes para que o espectador as decifre (ou se sinta provocado) a partir da combinação de diversos elementos que compõe a encenação.

Neste caso, o bom elenco formado pelos atores paraguaios Diego Mongelós, Diro Romero, Guadalupe Lobo e Natalia Santos não é capaz de completar, assim como a direção e nem o recurso cinematográfico utilizado cumprem tal tarefa. Ou seja, a expectativa de que seria uma abordagem/reflexão contemporânea sobre o passado que nos constitui enquanto latino-americanos sobreviventes de ditaduras, não se concretiza.  É um vazio que não se converte em provocação.

A PEÇA

O enredo mistura passado e presente para relatar um crime ocorrido nas imediações do Cine Splendid. Envolve cidadãos comuns e informantes da ditadura. Naquela época o cinema era usado para exibir os noticiários institucionais do governo antes da sessão do filme A bomba na selva do terror.

Com idas e vindas, atores e personagens trocam de lugar. Óculos escuros são dispositivo para viagem no tempo. Enquanto os personagens vivenciam a pseudotraquilidade da ditadura, o ator relata os acontecimentos com suposto afastamento e ironia. Ao invés de lentes de aumento, como são escuros, deveríamos entender o acessório como sinal de olhares obscuros em relação ao próprio passado?

É nessa hora – a do presente – que temos conexões mais presentes entre Brasil e Paraguai. Ou melhor, entre Belo Horizonte e Asunción. O Cine Splendid é hoje um estacionamento, assim como aconteceu com o nosso Cine Pathé. A Igreja Evangélica também se expande por lá da mesma forma como ocorre por aqui.

Cine Splendid. Crédito: Luiza Palhares

Banalidade do mal

Confesso que a referência à expressão criada por Hannah Arendt (1906-1975) no início do espetáculo me animou. Segundo o que filósofa argumentou no livro lançado em 1963, o mal é político e histórico. “O mal é produzido por homens e se manifesta apenas onde encontra espaço institucional para isso – em razão de uma escolha política”, diz o verbete da Wikipédia.

Cine Splendid parece ter muito clara a teoria. Entre o discurso e a prática, porém, sempre existem distâncias incômodas. Para usar a expressão de Arendt, a ficção criada por Sara Pinheiro banalizou de tal forma o cotidiano dos personagens que acabou camuflando além da conta o clima de terror. Sim, embora esse jogo seja uma intenção da dramaturgia, dificulta a compreensão da peça. Principalmente pela plateia brasileira.

Cinema e Teatro

Os Pablo Lamar e Ricardo Alves Jr. tem trajetórias bem-sucedidas no cinema. Era de se imaginar que a linguagem audiovisual estaria presente. O curta A bomba na selva do terror dirigido por Luiz Pretti e exibido durante a encenação alinhava algumas críticas tecidas ao longo do texto. O vídeo, no entanto, serve à peça mais para despertar uma nostalgia do presente em relação ao passado (no meu caso) dos cinemas de rua do que para complementar a narrativa. Nesse sentido, fica alegórico.

São tantas as possibilidades do audiovisual ocupar uma cena que a banalidade (Arendt de novo) de uma tela branca descer no meio do palco para reafirmar algo que o teatro já vinha apresentando parece gratuito. O que o cinema pode oferecer ao teatro e o que o teatro pode dar ao cinema quando as duas expressões artísticas tem oportunidade de se encontrar em um palco? Cine Splendid também deixa essa lacuna aberta.

CONFIRA A SEGUIR A RESPOSTA DA EQUIPE DE CINE SPLENDID

Cine Splendid. Crédito: Luiza Palhares

Carol,

Admiramos a sua disposição ao diálogo através de tal convite.

Percebemos que, muitas vezes, a forma como a crítica desempenha seu papel vai na contramão da feitura teatral: um imediatismo em concluir ideias/posicionamentos sobre uma arte que, pela sua própria natureza, se modifica, se desdobra, se amadurece através do contato direto com o espectador, ou seja: é necessário tempo para o encontro se concretizar. Sendo assim, seu convite nos pareceu muito interessante, uma vez que nos mobiliza tanto para repensar o espetáculo em questão, quanto repensar a própria crítica.

Vamos lá.

O FALSO ENREDO

“O enredo mistura passado e presente para relatar um crime ocorrido nas imediações do Cine Splendid. Envolve cidadãos comuns e informantes da ditadura” – você escreve sintetizando o espetáculo.

A peça, ao contrário do que você aponta, não visa retratar o crime ocorrido nas imediações do Cine Splendid. O projeto partiu desse caso para daí ficcionalizar. A sinopse seria, então, quadros cotidianos de pessoas que possivelmente foram ao cinema no dia do crime, e não o retrato do crime em si. O cinema é um elo geográfico na narrativa. E o filme que passa nele é uma metáfora do terror que perpassa a vida daquelas pessoas que frequentam o cinema.

Quanto ao enredo da peça, estamos de acordo que talvez devêssemos repensar alguns pontos dramatúrgicos: a fala que abre o espetáculo, por exemplo, faz menção ao caso do Cine Splendid. Além disso, a figura do polaco reatualiza na ficção a história verídica da qual a escritura do texto partiu –  o que realmente se transforma em uma “falsa pista”, podendo gerar uma expectativa errônea no espectador. Aquele que se ancora em tal pista (o crime do Cine Splendid) possivelmente terá problemas em percorrer o que de fato a peça se propõe a ser (e isso – sim! – pode ser considerado uma fragilidade dramatúrgica a ser revisada).

A BANALIDADE DO MAL

“O enredo mistura passado e presente para relatar um crime ocorrido nas imediações do Cine Splendid. Envolve cidadãos comuns e informantes da ditadura”.

Voltamos à frase escrita por você. E, mais uma vez, discordamos: a história não envolve cidadãos comuns e informantes da ditadura. Os cidadãos comuns são os informantes da ditadura! Esse seria o principal ponto da peça, inclusive para se refletir sobre o conceito de Hannah Arandt.

O vendedor de bolos que ronda pelo bairro, uma vizinha, um companheiro de bar, ou até mesmo um membro da família pode ser um Pyrague – figura flutuante, coringa, e chave para a trama, simbolizada através dos óculos escuros (olhos que veem sem ser vistos).

Longe de termos propriedade acadêmica sobre “o mal banal”, tal conceito da filósofa alemã aponta, a nosso ver, para uma reflexão acerca não sobre os principais mandatários do fascismo, mas sim dos cidadãos comuns – muitas vezes, cidadãos exemplares! São pessoas que, longe de serem monstruosas, acabam compactuando com um sistema perverso. Um bom vizinho, um bom familiar, um bom trabalhador, um cidadão de bem – que para sobreviver segue as ordens impostas sem o menor distanciamento. Foi assim que milhares de judeus foram mortos em consenso com a população civil, escreve Arendt (claro que de modo muito mais complexo!) É assim que, ainda hoje, gritos de torturas são abafados, mesmo estando bem próximos das nossas casas.

Cine Splendid. Crédito: Luiza Palhares

DÚVIDAS

Ficamos na dúvida do que realmente chegou para você dos quadros contados (até mesmo pela questão da língua). Você diz que a dramaturgia banalizou demasiadamente o cotidiano dos personagens. O que há de banal numa mãe que espera o filho desaparecido para o jantar?  Ou em vizinhas que naturalizam a violência sofrida por uma menina? Ou um senhor que não consegue dormir porque uma música toca sem parar na delegacia ao lado, camuflando cenas de tortura? Ou o fato de qualquer personagem poder ser um pyrague?

“Es rara/o” é pontuado durante ao longo da peça. O outro, mesmo muito próximo espacialmente, é tratado como estranho; o diferente condenado, anulado em seus direitos. No cotidiano, o mal se tece nessas simples configurações. Essas bases, uma vez institucionalizadas, são levadas a outros campos: politica, religião etc.

Longe de defendermos a peça. Queremos saber o que realmente chegou disso para você, tanto do texto quanto da construção imagética na cena.

PYRAGUES E OUTROS SIGNOS

Em todas as ditaduras da América Latina houve informantes.

Entretanto, no Paraguai essa figura se faz muito mais marcante que no Brasil. Lá os Pyragues estão presente de forma contundente tanto na história oficial (foram mais de 2.800 colaboradores) quanto no imaginário popular. Os pyragues não são pessoas estranhas, eles habitam o universo cotidiano.

Pyrague, lenços colorados, orekuete, o Março Paraguaio, ou mesmo a foto do Pastor Coronel (um dos mais atrozes torturadores) e da matança atual de Curuguaty são signos que não chegam ao espectador brasileiro de maneira direta. Para alguns desses signos, tecemos explicações ao longo da trama; para outros, colocamos referências no programa; já outros, ocupam camadas mais difusas dentro da narrativa.

Sobre esse ponto, achamos válida a seguinte reflexão:

Conhecemos muito pouco sobre a história do Paraguai – e isso diz muito sobre uma configuração sócio-política, como você mesma pontua em seu texto (“Sim, precisamos combater o distanciamento que o Brasil se impôs dos vizinhos latino-americanos”). Sendo assim, ao invés da peça tentar explicar todos os signos paraguaios, se aproximando ao máximo do espectador brasileiro, não seria válido igualmente o movimento contrário? Se a peça não fornece ao público todos os elementos para sua total fruição, estaremos satisfeitos se esta, pelo menos, desperte no espectador a curiosidade de se criar pontes, e preencher certas lacunas.

Cine Splendid. Crédito: Luiza Palhares

CINEMA E TEATRO

O encontro do Teatro com o Cinema não se faz apenas pelo uso direto de uma projeção em cena, senão também através de recursos e referências que tais linguagens são capazes de compartilhar. Uma parte do texto, por exemplo, faz citação direta ao clássico Psicose. Há também a montagem paralela de cenas, recurso muito usado na narrativa cinematográfica. A trilha sonora remete aos gêneros de terror e suspense. Os recortes de luz, por momentos, sugerem enquadramentos. Em uma das cenas, há a construção de um de fora de campo: uma violência que acontece no extracampo, mas que ressoa na conversa das personagens.

BOMBA NA SELVA DO TERROR

“O que o cinema pode oferecer ao teatro?”, você pergunta.

No caso específico de Cine Splendid, Bomba na Selva do Terror é o documento que finca a ficção na realidade. Sabemos da importância de documentos quando o assunto é ditadura. Quando finalmente vemos imagens de Asunción projetadas no teatro é como se o que até então estava na ordem da “ficção” (anunciada ironicamente pela peça) ganhasse uma dimensão documental dando o peso de comprovação aos terrores cometidos por esses ditos “Governos democráticos”. Não vemos como a peça faria isso sem a parceria com o cinema.

“O vídeo, no entanto, serve à peça mais para despertar uma nostalgia do presente em relação ao passado dos cinemas de rua do que para complementar a narrativa. Nesse sentido, fica alegórico”.

Onde existe Nostalgia? O estacionamento que antes era um cinema é palco para o terror, aquele escondido nas paredes, jogados para debaixo do tapete. Aqui, o passado é convocado para trazer à tona violências e mortes. Não há nenhuma ode ao glorioso passado dos cinemas de rua.

Além disso, a projeção de Bomba na Selva do Terror serve como ponte para o relato do filho fantasma na cena final da peça. Acreditamos que o peso conferido ao relato feito à mãe se dá, em parte, por conta da guinada à realidade que ocorre na peça. Sendo assim, ele se torna um elemento narrativo, ao contrário de alegórico. Apesar de não vermos problema algum em obras alegóricas (mas isso já é outra conversa).

Por fim, não podemos esquecer que na peça o filme é assistido pela família “Margarina”, aquela dos comerciais, que se posiciona frente a nós como espectadores. O filme, então, faz parte direta da narrativa dizendo que aquela família (alheia e ignorante ao que acontece atrás das paredes de sua própria casa) poderia ser a nossa ou a de qualquer um sentado no teatro.

Cine Splendid. Crédito: Luiza Palhares

PASSADO E PRESENTE

Cine Splendid fala sobre o cotidiano em tempos da ditadura, sobretudo para refletir sobre o hoje. Interessa refletir sobre algumas reatualizações de um passado terrível: pequenas atrocidades que vão se acumulando, os olhares e julgamentos insanos sobre o vizinho, nossas próprias posturas.  “En la Faculdad de Sociologia estan haciendo un grupo de estúdio de la obra de Karl Marx” “No pasaran” sentenciam dois pyragues na peça, tal como aconteceu em 2017 na UFMG.

Na quinta-feira 16 de novembro de 2017, Cine Splendid começou sua apresentação às 19:10, no CCBB. Logo em frente, a Praça da Liberdade era ocupada por pessoas pedindo intervenção “cívico militar”. “Pátria, pátria, pátria” gritam os quatro atores atuando no final de uma cena em que o cotidiano está invadido por publicidades de produtos estrangeiros. Fecham a mesma cena com os lenços colorados, tão utilizados durante a ditadura paraguaia, quando governo e partido se transformaram em uma única instituição. Os candidatos à presidência no Paraguai (o atual presidente, o próprio filho do Stroessner, e outro filho de um colaborador stronista) têm trazido novamente o costume do lenço colorado. É também o discurso nostálgico do grande partido e, às vezes, faz-se sonar a polca do general Stroessner durante as campanhas eleitorais.

Não sei se na prática conseguimos dar conta do recado. O recado talvez seja muito maior e mais importante do que conseguimos com a peça. Entretanto, esse diálogo já nos vale, como dito no início desta carta. Nos vale não apenas pela reflexão sobre a feitura do espetáculo e da crítica, mas também por se fazer espaço para falarmos de símbolos que – infelizmente – estão presentes (com diferentes significantes) tanto no Paraguai como no Brasil contemporâneo.

Abraços,

Equipe Cine Splendid.

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