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‘120 Batimentos por Minuto’: Um brinde aos loucos que amaram – e lutaram

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Por Daniel Oliveira – Colaboração especial para o Culturadoria

Em uma cena de 120 Batimentos por Minuto, um personagem descreve um carro pego de surpresa por uma nevasca, parado no meio da estrada. Era impossível ver se estava no acostamento ou não. Os outros veículos passavam tirando fininho, podendo bater e destruí-lo a qualquer momento. Ainda assim, os passageiros dentro do carro se sentiam felizes porque estavam com quem amavam.

A passagem é uma metáfora perfeita dos gays vítimas da Aids nos anos 80 e início dos 90. Depois da libertação sexual da década de 1970, foram pegos de assalto pela epidemia e, abandonados à própria sorte pelo poder público. Tiveram que assistir às pessoas que amavam e à sua comunidade serem dizimadas pelo vírus. Uma roleta russa em que se podia sempre ser o próximo.

É contra essa negligência que os ativistas do ACT UP – organização civil formada pela população LGBTQ, simpatizantes e soropositivos nos EUA – lutaram. 120 BPM conta a história da versão francesa do grupo. É formado por jovens que, inspirados por seus pares norte-americanos, expuseram e combateram o descaso do governo de François Mitterrand. Assim como Reagan nos EUA e tantos outros políticos e conservadores, os políticos foram os grandes responsáveis pelo maior genocídio consentido de uma população desde o holocausto.

O filme do cineasta Robin Campillo (do ótimo Eastern Boys) narra a jornada de Nathan (Arnaud Valois). O jovem gay entra no grupo e se apaixona pelo soropositivo Sean (a revelação Nahuel Pérez Biscayart). O romance é uma mera ferramenta para retratar as ações do ACT UP e os conflitos, discussões políticas e tensões naturalmente surgidos entre pessoas comuns assumindo o peso de solucionar uma crise de que o Estado se absteve – isso, enquanto morriam e viam seus amigos mais queridos partirem ao seu lado.

 

Nathan (Arnaud Valois) e Sean (Nahuel Pérez Biscayart) no filme do diretor Robin Campillo. Crédito: Memento Films/Divulgação

CORAGEM

120 BPM não tem medo de encenar e expor o lado mais politizado dessa briga. Mostra que não existe ativismo que não incomoda – que ovos foram quebrados, e nem sempre a omelete ficou boa. Seus maiores méritos, porém, são dois. O primeiro é, com um elenco vasto e diverso, entender que não existe “gays” como uma massa indistinta e homogênea. Trata-se de um grupo de pessoas diferentes com opiniões muitas vezes opostas. Gente que nem sempre, ou quase nunca, pensa igual ou concorda umas com as outras. A montagem ressalta isso ao mostrar a mesma ação do grupo sob diferentes pontos de vista.

O segundo é retratar como, mesmo em meio à pior epidemia do século XX, os ativistas não deixavam de sentir prazer e viver sua homossexualidade. Algumas das cenas mais bonitas do longa são as do grupo na balada. Campillo filma quase como um culto, uma experiência religiosa. Porque o clube, a boate, é nossa igreja. Cantar e dançar ao som de uma música bem trash da Madonna ou da Britney Spears é nossa forma de oração, de nos conectar com quem nós somos e com o Deus que mantém isso vivo.

NEGLIGÊNCIA

Um dos principais motivos pelos quais Mitterrand, Reagan e a maior parte do mundo não fizeram nada para conter a Aids é que, nas feridas, no aspecto esquelético e na debilidade da doença, o preconceito deles reconhecia a forma como realmente enxergavam os gays. Para eles, era certo que o HIV exterminasse toda aquela alegria e o orgulho surgidos nos anos 70.  O vírus era uma ferramenta de extinção da dignidade, que era o que eles secretamente desejavam.

 

120 BMP foi o filme indicado pela França para concorrer uma vaga ao Oscar. Crédito: Memento Films/Divulgação

 

“O PESSOAL É O POLÍTICO”

Para além do ativismo, da política e da luta, a melhor forma de responder a isso era viver. Transar. Beijar. Dançar. Rebolar. Ousar sentir o prazer de ser gay em todas as suas mais desavergonhadas formas. As cenas na boate, com a ótima trilha e a fotografia reforçam essa alegria de se resistir inimigo invisível que dançava entre eles.

Porque – e isso é o grande tema de “120 BPM” – o pessoal é o político. Não por acaso a conversa mais politicamente carregada do longa, sobre de quem é a responsabilidade em uma transa que resulta numa contaminação, acontece durante uma belíssima trepada. A luta da organização é o cerne do filme, mas ela só se materializa na sua razão de ser, que é a história de Nathan e Sean.

É no arco de Sean que o roteiro contrapõe a coexistência de vida e morte, do claro (reuniões) e escuro (boate) da fotografia, da época. É na reação dele à visita do líder do grupo ao hospital que o espectador sente a dor e a indignação de todos aqueles que, mesmo com toda a sua luta e resistência, perceberam que a cura talvez não chegaria a tempo. Aí o público se dá conta de todos os livros que nunca foram escritos, os beijos que nunca foram dados, os amores que nunca se concretizaram. Por pura e total negligência. Porque alguns usaram a Aids como arma de seu preconceito, e outros como forma de ganhar dinheiro.

“120 BPM” é uma ode aos heróis que sobreviveram a essa guerra. É uma elegia àqueles que pereceram, mas lutaram para que Pabblo Vittar, Frank Ocean, Pedro Almodóvar, eu e tantos outros estivéssemos aqui hoje. Com a cara no sol, demandando nosso direito a viver, transar, brigar, errar, à saúde pública. E à dignidade de simplesmente existir e amar sem temer.

 

Daniel Oliveira é crítico de cinema por opção e gay por pura sorte.

 

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