Curadoria de informação sobre artes e espetáculos, por Carolina Braga

Crítica em Diálogo: ‘Suave coisa nenhuma’ e as sutilezas cruéis das relações abusivas

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Crítica em diálogo é um projeto que começa a tomar contornos mais fortes dentro do Culturadoria. Ele surge porque eu não acredito mais em uma crítica de teatro horizontalizada. Por isso, procuro o diálogo com quem cria a peça. Dessa conversa, sai um texto – geralmente longo – que tem como objetivo ampliar a compreensão e os significados de uma peça de teatro.

Suave coisa nenhuma esteve em cartaz no Verão Arte Contemporânea e torço para que volte mais vezes. A seguir, nossa experiência dialógica.

 

Crédito: Bruna Brandão

 


Carolina Braga, jornalista

Suave coisa nenhuma é daquelas peças que você vê e ela deixa um efeito em doses homeopáticas. Os dias vão passando e vamos assimilando outros detalhes da história contada. Isso porque sutileza é um adjetivo chave para o espetáculo dirigido por Samira Ávila, com Henrique Cordoval e Lorena Tófani, dramaturgia de Marina Viana.

O tema não é nada sutil. A montagem fala sobre as relações abusivas. No caso, de um relacionamento que mistura “amor” e trabalho. Mas poderia se aplicar a diversos tipos. Eles são bailarinos, se preparam para estrear um espetáculo e, entre um ensaio e outro, nos damos conta de que a leveza faz parte somente da arte deles, não da vida.

METÁFORAS

O que mais me chamou atenção é que, assim como no cotidiano, aquilo que costumamos identificar como relação abusiva, na maioria das vezes, é imperceptível para quem está dentro. É mesmo muito sutil. Quando a pessoa que vive esse tipo de coisa no romance, na família, no trabalho, na amizade se dá conta do cenário, é um martírio encontrar forças para sair.

Toda a ação da peça se desenvolve nessa tensão. A mulher sabe que não está bom, quer sair mas cadê perna pra isso? É acertadíssima a metáfora que a dramaturgia de Marina Viana faz com o próprio teatro. Você vai ver um espetáculo e por um acaso é ruim. O que te impede de levantar e sair? Convenções sociais? Nos casos das relações: seria também apenas levantar e sair? É claro que não. Também pesam convenções sociais, emocionais.

Suave coisa nenhuma trata de um tema delicado sem cair no melodrama. Também não toma partido e nem julga o que levou aquela mulher a construir a dependência em relação a seu par. Há uma isenção que contribui para que o aspecto da sutileza que mencionei anteriormente ganhe mais força.

ORIGEM

A história desse espetáculo começou como uma cena curta apresentada no festival do Galpão Cine Horto. Aquela semente se dissolveu ao longo dos 60 minutos de uma montagem que aposta no equilíbrio entre a corporalidade e a palavra. Muitas vezes o que não é possível ser dito pelos personagens, vai para o corpo. Uma força, um movimento mais brusco. Em outras palavras: a brutalidade está no silêncio.

Nesse sentido, tudo é texto. O movimento (Pedro Romero), a música (Manu Ranilla e Nath Rodrigues), a iluminação (Marina Arthuzzi e Jésus Lataliza), o cenário (Branca Peixoto e Bruna Cosfer). Orquestrar o equilíbrio destes elementos é uma qualidade da direção de Samira Ávila e seu assistente Sammer Lêgo Lemos. Fazendo assim, a equipe respeita o jogo teatral, sem obviedades.  Uma mesa que vira porta, trampolim, camarim com todos os significados muito claros.

A trilha sonora desempenha papel importante. Ainda assim, e mesmo achando linda a participação ao vivo de Nath Rodrigues, não consegui ver impacto em sua presença ao vivo. Naturalmente porque toda a ação se centra no embate ‘silencioso’ dos atores.

Os jovens Henrique Cordoval e Lorena Tófani, dentro de suas possibilidades corporais, demonstram grande preparo para a dança. No entanto, em alguns momentos de interpretação dramática, vê-se mais o ator do que o personagem. Talvez seja proposital. Uma forma de nos dissuadir da ideia de que o homem que agride a mulher seja sempre aquele machão tosco. Não é, né? Muitas vezes as pessoas nem tem ideia da diferença que uma máscara social pode fazer.

Suave coisa nenhuma é um espetáculo conectado com o nosso tempo. Não é nada difícil fazer paralelos entre a peça e o seriado americano Big Little Lies, por exemplo. Mesmo que sejam produtos de entretenimento com tamanhos diametralmente opostos, pegam em uma ferida. As sutilezas que rondam as relações abusivas.

*Peça vista no Teatro de Bolso do Sesc Palladium em dezembro de 2017

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DIALOGO COM OS ARTISTAS

 

 

Samira Ávila, diretora 

Em primeiro lugar, gostaria de enfatizar a potência da oportunidade deste diálogo! A crítica promover e demandar (!) o dialogismo efetivo, na (esta) prática, é riquíssimo. Faz muito sentido, na verdade. Houve um tempo (rs) em que aguardávamos sair A CRÍTICA.

E, por mais que o movimento da crítica seja de reflexão e construção, quando podemos, de fato,  conversar, construir, elaborar com o autor da crítica? Bom, nunca tinha me ocorrido e por isso enfatizo a importância da iniciativa!

Encontrar a medida da sutileza para tratar da temática de relações abusivas foi o objetivo desde o início. Porém, havia um pouco de medo, da minha parte, em negligenciar a temática e suas duras facetas sob a prerrogativa da sutileza. Tive medo de podermos estar sendo covardes e românticos com as questões que envolvem abuso.

Quis, em alguns momentos, colocar o dedo na ferida e incomodar mais. Nos referenciamos em alguns filmes e lembro de acabar sempre trazendo a cena mais explícita e cruel que já vi no cinema, que é o estupro do filme Irreversível. Acabamos por ensaiar muitos meses com a música desta cena do filme, na nossa cena de estupro (que no nosso caso, é o conjugal).

CENA CURTA

Mas, por mais que eu quisesse pesar a mais a mão, eu me sentia completamente seduzida e fiel (de fé!) à proposta original da peça, que era a cena curta Last Dance, criada pelo Henrique e pela Lorena. A cena curta era linda, verdadeira, inteira, justa. E, eles propuseram, na cena curta, quase um elogio à sutileza.

Mas, cheguei a pensar que um espectador menos envolvido poderia sair ileso à provocação. Sutil demais?, Me perguntava. Ao mesmo tempo, pensava que era aquele lugar – de jogar luz sobre os abusos mais sorrateiros, aparentemente inofensivos, socialmente aceitáveis e até mesmo promovidos por pessoas “fofas” – que era nosso norte, sempre.

Estamos falando de uma seara complexa, com muitas camadas e formas: abusos que não geram dados e índices, porque não são denunciáveis à segurança pública do nosso país. Abusos que não são considerados crimes, que sequer a vítima consegue compreender como abuso, grande parte das vezes.

Atos, ações, falas, posturas e posicionamentos que instauram relações de poder desiguais, onde um é sempre subjugado e diminuído em relação ao outro, mas que são corriqueiras, usuais, instauradas e aceitáveis. Tratar destas dinâmicas – extremamente sutis, mas não menos perigosas – exigiu uma atenção muito grande e uma busca constante da medida e peso justos de cada ação e fala da peça.

O FEMININO

Queríamos muito ter mais mulheres juntas! Em cena e no processo, juntas. Convidamos a Nath Rodrigues e a Manu Ranilla para estar conosco na construção musical (para nós, também dramatúrgica) do espetáculo.

A presença delas, corpos e vozes femininas, acumuladas de experiências tocadas pelas questões apresentadas no espetáculo, fortaleceu muito o processo e a cena. Em cena, a presença delas (que, na segunda temporada teve somente a Nath, pois a Manu estava viajando) significa um elo de força e suporte entre aquelas mulheres, sendo que a música produzida por uma, reverbera e acalanta a outra.

Pensamos em gravar a trilha criada pela Nath e pela Manu, mas à medida que ensaiávamos juntas, não conseguíamos mais desvincular estas presenças/corpos.

Sem dúvida foi e continua sendo um desafio para nós compreender como a presença destas mulheres, fortíssimas, compõem a cena teatral. Continuamos buscando encontrar a medida justa de, ao contar a estória deste casal, termos outra(s) mulher(es) conduzindo e fortalecendo a cena, sob uma perspectiva feminina.

ELENCO

Esse lugar do ator e do personagem é um ponto presente nos nossos debates internos! Eu, pessoalmente, gosto de ver em cena os atores presentes, no sentido que se possa perceber/sentir/escutar o artista para além do personagem.

Nem sempre isso é possível. Depende muito da dramaturgia. Mas no caso de SCN, essa dualidade – ator e personagem – nos interessava, visto que muitos textos foram escritos pelos atores a partir de experiências abusivas reais, ocorrida com eles. Não queríamos cair, dramaturgicamente, no lugar do depoimento. Mas, nos interessava o discurso mais apropriado e pessoal, que pudesse até mesmo gerar a dúvida sobre a autoria daquela voz e fala em alguns momentos.

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Crédito: Bruna Brandão

Lorena Tófani, atriz

Antes da cena curta, eu e Henrique conversávamos informalmente sobre os relacionamentos amorosos sexuais vividos por nós. O abuso era um assunto recorrente durante estas confidências.

Surgiu a vontade de falar especificamente sobre o abuso cotidiano. Este quase imperceptível para quem vive. A relação consigo, com o outro, com o corpo do outro, com a vontade, privacidade e individualidade fica deturpada quando nos encontramos nesse tipo de situação.

O que é abuso?

Ninguém se apaixona por alguém abusivo, a situação/condição do abuso não está dada assim, com clareza. Antes disso existe afeto, e é por esse motivo que a decisão de não permanecer é dolorida e difícil. Os sinais de abuso parecem, no princípio, um cuidado excessivo. Quem ama cuida, sente ciúmes que mal há nisso?

Esta ideia de que amor e dor andam lado a lado é posta desde sempre a gente se acostuma com isso e demora para ver o quão doentia se tornam nossas relações.  Nos ocupamos em aproximar o trabalho das nossas experiências e talvez neste sentido nos afastamos dos esteriótipos de um homem abusivo “machão” e de uma mulher em situação de abuso “Amélia”.

Processo criativo

Durante todo o processo, desde a cena curta, a pesquisa híbrida entre dança e teatro esteve presente. O borramento entre estas fronteiras é um estudo que caminha comigo há um tempo.

Pedro Romero, que assina a direção coreográfica, estudou na Folkwang Univesitat der Künste, dirgida por Pina Baush. A escola trabalha com uma linha de dança moderna alemã, fundamentada em uma dança expressiva. Daí o termo Dança-teatro.

A aproximação com a Dança-Teatro de Pina nos interessava muito. Construímos coletivamente as partituras coreográficas a partir de movimentos cotidianos e ações. Na peça, resolvemos definir mais claramente de onde estes artistas vêm, o recorte com a dança ficou ainda mais claro.

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Henrique Cordoval, ator

Carolina, escrevo pra você com alegria e com o mesmo respeito e cuidado que senti ao ler suas impressões sobre o nosso trabalho. Ele que foi tomando conta da gente de forma também homeopática. Ficando cada vez mais difícil não observar os casais nas ruas, os relacionamentos dos nossos amigos e conhecidos. Até mesmo a forma como sutilmente abusamos ou usamos de certa força no trato com o outro.

Durante todo o processo, passamos por diversas fases. Em certo momentos, buscamos leveza, em outros momentos buscamos o peso daquilo que não deixa dúvidas ao olhar do outro de que uma relação é ou não abusiva. Fizemos desta forma, para achar esse meio do caminho, para encontrar algo que saltasse aos olhos de quem já passou por algo do tipo e para alertar quem acha que nunca viveu algo do tipo.

Gênesis

O espetáculo nasceu de uma cena curta muito próspera, onde um conjunto de artistas deram suas ricas contribuições. Uma delas foi o texto do Raysner de Paula. Sutil, doce e muito eficiente. Quando começamos o processo do espetáculo entrou Cris Moreira e trouxe uma objetividade  muito importante para que toda essa história não passar batido ao olhar de “quase” nenhum espectador. Por último, entra Marina Viana que trouxe sua sagacidade e poesia pra todo o conjunto da trama que é contada.

Muitas inspirações foram surgindo. Filmes, peças de teatro, espetáculos de dança. Bebemos de muitas fontes, entre as inspirações temos Café Müller de Pina Baush, Revolutionary Road de Sam Mendes da obra de Richard Yates, Blue Valentine de Derek Cianfrance e Um copo de Cólera de Raduan Nassar.

A direção de Samira é muito assertiva por diversos motivos, um deles é a forma isenta que ela buscou durante todo o processo. Em não enfraquecer o discurso mostrando apenas um lado da história, e em não relativizar nada dessa história. Além de toda a firmeza em tomar decisões. Uma mestra na condução de todo o processo.

Usamos trilha sonora executada ao vivo e em alguns momentos isso foi muito discutido. Queríamos que a criação da trilha tivesse, assim como praticamente toda a ficha técnica, mulheres. Entra Nath Rodrigues que convida Manu Ranilla. E essas duas dão o tom de toda a ação desenvolvida nessa uma hora de espetáculo. Pra nós é muito caro a presença de outra mulher além da Lorena em cena. Trazendo uma leve mensagem de união feminina em cena.

Atuação

Sobre o trabalho que desenvolvo no espetáculo de atuação, abro um parênteses para dizer o quanto fiquei contente com o retorno. Buscamos propositalmente uma humanidade nesse homem que abusa. Como é na vida mesmo. Mesclamos muito metateatro como ponto de partida para essa reflexão. Observando que em alguns momentos a balança pesa pra um lado, mas que ela pode pesar em certo momento pro outro, que somos todos possíveis abusadores.

Buscamos o controle das situações à todo momento. Trabalho, casa e em todas as formas afetivas de se relacionar. E que o que devemos é estar mais atentos a isso. Mais do que um personagem, busco em todo momento, corpo presente. Por isso me senti muito agradecido com o ponto em que você toca.

Por fim, ressalto novamente o quão fiquei satisfeito com seu olhar cuidadoso para o nosso Suave Coisa Nenhuma. O quanto é importante esse diálogo que você abre.

Vida longa ao Culturadoria e para qualquer projeto que venha a fazer parte.

 

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