Simonal
As condenações sempre foram comuns desde que o mundo é mundo e desde que existe sociedade. Capitu, por exemplo, foi acusada de trair Bentinho no romance de Machado de Assis. Tal caso gera discussão até hoje, mas ninguém tem certeza do que aconteceu de fato. Talvez nem o próprio Machado tenha pensado nisso.
Outro exemplo mais antigo disso é “Apologia de Sócrates”. Trata-se de uma obra literária de Platão em defesa a Sócrates. Ela expressa a visão do primeiro filósofo em relação ao segundo, que teria sido acusado de corromper a juventude na Grécia. Além disso, Sócrates não teria aceitado os Deuses que foram reconhecidos pelo estado, iniciando, assim, novos cultos. Ok! Mas o que isso tem a ver com Wilson Simonal, brasileiro, milênios depois de Cristo e da Grécia Antiga?
Atualidade
Bom, na história clássica Sócrates teria sido injustamente julgado. Ou melhor, controvérsias teriam sido constatadas no processo do seu julgamento. Meleto, testemunha na defesa do filósofo, caiu em contradição ao dizer que era ateu e em outro momento ao dizer que ele acreditava em semideuses. Resultado: foi condenado e a conclusão foi a de que o crime foi dos juízes que o julgaram e condenaram à morte. A única coisa que Sócrates queria de fato fazer era filosofar.
Já na história recente o acontecido foi com o artista Simonal. Ele foi queimado pela opinião pública nos anos 70 pela acusação de delatar um de seus funcionários na Ditadura Militar. Morreu nos anos 2000 ainda no ostracismo artístico. O talento e toda a produção dele foram ignorados diante dos fatos mal explicados. Nas últimas décadas Simonal é objeto de um esforço, liderado por seus filhos, para reavivar a memória do músico.
Tais afirmações ficam evidentes pelo fato de a família e outros artistas procurarem, desde a morte dele, reacender o seu legado. Para isso, foi lançada a biografia “Nem vem que não tem – A vida e o veneno de Wilson Simonal”, em 2009, por Ricardo Alexandre, “Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga: Simonal e os Limites de uma memória tropical” (2011), do historiador Gustavo Alonso em 2011, e “Ninguém sabe o duro que dei”, documentário de 2009. Todas as obras discutindo vida e obra do cantor.
O filme
Com o filme “Simonal”, de Leonardo Domingues, o objetivo é o mesmo. O diretor e os filhos de Simonal, Max de Castro e Simoninha, que mantêm o projeto “O Baile do Simonal”, buscam continuar resgatando e expandir as memórias do músico.
Assim como as outras cinebiografias, a de Simonal (interpretado por Fabrício Boliveira) mostra a sua trajetória desde o começo até o fim. No entanto, a narrativa se apoia nas particularidades e na essência de Simonal. O jovem, negro e carioca, com seu jeito malandro vai encontrando o seu espaço no mundo da indústria musical e acaba se tornando fenômeno de uma geração.
Além de contar o envolvimento de Wilson Simonal de Castro na ditadura, o filme explora questões antes não tão bem visitadas. Em primeiro lugar: o racismo. Cerca de 50 anos depois o assunto, infelizmente, ainda precisa ser discutido na nossa sociedade. Como ainda ocorre hoje, muitos talentos são desperdiçados devido à cor da pele das pessoas que os embalam. Isso ficou claro no longa.
Outro aspecto que é novidade é a relação de Simonal com Tereza. A esposa do artista é interpretada pela brilhante Ísis Valverde. A atriz já trabalhou ao lado de Fabrício Boliveira em Faroeste Caboclo (2013) e já participou de inúmeras produções. Ao todo foram 12 novelas na Globo, seis filmes e videoclipes. “Simonal” trata com complexidade toda a relação do casal e passa pelos momentos mais íntimos. Vai das brigas e até uma tentativa de suicídio de Tereza.
Este núcleo do filme, de décadas atrás, também provoca reflexão. O machismo enraizado na nossa sociedade resiste. O nó na garganta ao ver as dores de Tereza se acentua na cena que o marido a agride.
Técnica
Não poderíamos de deixar de comentar a técnica usada pela produção e direção do filme. Ele começa e acaba na mesma cena: Simonal subindo ao palco para uma grande apresentação. O miolo também é surpreendente. A cena mais marcante é o plano sequência que Leonardo Domingues faz no primeiro dos maiores shows de Simonal.
Ao cantar os versos “Meu limão, meu limoeiro / Meu pé de jacarandá / Uma vez skindô lelê / outra vez, skindô lalá” acompanhado da fiel plateia ele sai do palco calmamente, anda pelo teatro, dá um passeio na rua, toma alguma coisa e volta como se nada tivesse acontecido. A cena acontece enquanto o público continua entoando os versos sobre pés de frutas. O take reflete a relação que Simonal tinha com a plateia, a conexão entre ambas as partes.
Ademais, “Simonal” é encantador pela música e pela possibilidade de entender uma das figuras importantes para a cultura brasileira. Ao mesmo tempo é intrigante porque, assim como nas outras produções, o envolvimento de Wilson Simonal com a ditadura não é explicado. Em suma, Simonal cometeu muitos deslizes, mas foi condenado pelos crimes errados.