“Deixa eu bagunçar você, deixa eu bagunçar você”. Na saída do teatro, o trecho de Zero, canção que Liniker e os Caramelows gravaram no primeiro EP ressoava repetidamente na cabeça. Soa como um aviso doce, ou melhor, um pedido de licença: “deixa eu bagunçar você, deixa eu bagunçar você”.
Lá em 2015, Cru (o EP) mostrou que Liniker chegou para bagunçar mesmo. Mulher ou homem? Falamos A Liniker ou O Liniker? Entre um show e outro, uma entrevista e outra, ela foi, não apenas bagunçando, mas mostrando que, no fim das contas, isso não é o que mais importa. Ou seja, Liniker organizou mais do que bagunçou. Cada um é cada um e o que todos precisamos é de respeito. E tempo.
O novo disco Goela Abaixo (2019) e seu respectivo show dizem muito sobre isso. Sobre o passar do tempo, a importância dele para a maturação das coisas, dos comportamentos, das pessoas. Inclusive é o que a artista nos conta em um dos raros momentos em que a timidez dá licença para que converse com a plateia.
Se Liniker e os Caramelows já surpreenderam no primeiro disco, dois anos e meio de estrada fizeram diferença na arte deles. As novas canções são encorpadas. Não apenas em termos de arranjos, de sonoridade, mas também nas letras.
É curioso porque a expressão ‘goela abaixo’, pelo menos pra mim, carrega uma certa violência. É forçar algo. No entanto, o disco que leva este nome é o contrário disso. Abriga discursos sobre afeto, sobre amor, sobre saudade, sobre intimidade, sobre paz, sobre mulher, sobre aceitação. A afirmação da diferença por meio da música. É, a carreira de Liniker foi goela abaixo mesmo!
O show
Goela, canção que inspira o nome do disco, abre o repertório. A música sintetiza a mensagem política que Liniker carrega no corpo. “Me afirmo ela e não tem ele não/ Se resiste essa canção, acordes são tão iguais / Goela amarela, goela sincera, goela que te engole / Se você bobear/ Fica com ela, respeita ela, que ela é mulher/ E você tem que amar”. Um abre alas bem claro, né?
Visualmente Goela Abaixo também é impactante. Um competente desenho de luz dialoga com o vídeo exibido. Uma caixa branca no fundo do palco dá tridimensionalidade às imagens. Há uma sintonia com a identidade do disco, criada pela artista de Belo Horizonte, Domitila de Paulo.
Os Caramelows, a banda que acompanha Liniker, é formada por sete instrumentistas e duas backing vocal. Os arranjos têm “peso”. Justamente isso foi um dos problemas no show no Sesc Palladium. A voz de Liniker, em diversos momentos, soou mais baixa. Talvez um simples problema de volume no estiloso microfone? Uma pena, pois mora ali o grande diferencial dela. É impressionante as extensões e tessituras que Liniker consegue alcançar com a voz. Ao vivo isso fica mais claro.
A artista
Se bagunçar padrões é premissa, dessa maneira, logo quando aparece Liniker reforça isso. Em resumo: raspou o cabelo, saiu do vestido. Sendo assim, abriu mão de qualquer manifestação visível de uma mulher ou mesmo de gênero. Apareceu de calça e blusa de gola alta de um tom só: roxo. O tênis é branco. O cinto também. O toque feminino é interno. Está no corpo. De toda forma, é uma imagem andrógina que bagunça.
Ao todo, foram 15 canções em cerca de 90 minutos. Apenas duas músicas do disco anterior. Tua e o hit Zero que, aliás, ganhou um belíssimo arranjo e a participação da plateia com as lanternas dos celulares acesas.
É interessante como o público já estava com o novo repertório na ponta da língua. Entre os pontos altos, Calmô, o primeiro single do novo disco, Bem bom e Intimidade. Vale destacar também a participação de artistas do projeto Lá na Favelinha, de Kdu dos Anjos. Eles se apresentaram na abertura e depois invadiram o palco. A cantora se jogou no passinho.
Diálogos
Liniker fala muito pouco, mas, quando comenta alguma coisa, rapidamente consegue um “estado de escuta”. O que é isso? Bem, é um silêncio absurdo por parte da plateia o que demonstra o estado de atenção que as pessoas têm ao ouvi-la falar. Sendo assim, isso é o sinal de que o que Liniker pensa e fala são tão importantes quanto aquilo que escolhe cantar.
Uma das faixas de Goela Abaixo é um texto, adequadamente batizado de “Textão”. Ao dizer que não se trepa em 15 minutos, Liniker, mais uma vez, chama atenção para a importância do tempo para a realização das coisas. E ela vai além: “Não se trepa em 15 minutos/ Porque expectativa muitas vezes não se cria só”.
Em síntese, o show de Goela Abaixo é a prova de que a cantora sabe bem que tipo expectativa gera desde 2015 e, com respeito ao tempo, criou uma resposta cercada de maturidade.
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