
Chris Ware, escritor e quadrinista de "Rusty Brown" Foto: FRÉDÉRIC STUCIN
O novo trabalho do autor do clássico “Jimmy Corrigan – o menino mais esperto do mundo”, “Rusty Brown” é lançado no Brasil em bela edição
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
“‘Não existem dois iguais’, qualquer criancinha sabe. E, de fato, entre os milhares de flocos de neve registrados em papel ou película desde que o homem começou a estudá-los, cerca de três séculos atrás, nunca surgiu um par.”
Chris Ware levou 18 anos para concluir as histórias de “Rusty Brown”. Estas narrativas foram produzidas entre 2000 e 2018 e saíram em diferentes publicações ao longo desses anos. Na primeira parte do quadrinho, no decorrer de um único dia, conhecemos seus seis protagonistas, em uma escola no meio-oeste americano. Em seguida, viajamos no tempo, de volta ao passado e em direção ao futuro, na companhia de três dos personagens. Sendo assim, nesta observação da linha da vida destes – de um deles acompanhamos o ciclo completo, do nascimento à morte – desvendamos traumas, confrontamos culpas e arrependimentos.
“Rusty Brown” chega ao Brasil com tradução de Caetano Galindo pela Quadrinhos na Cia.
Trama e personagens
Rusty Brown é um garoto de 8 anos vítima de bullying na escola. Numa manhã de neve, ele se descobre dotado de superpoderes. Dois irmãos, Alice e Chalky White, se preparam para o primeiro dia de aula numa cidade e escola novas, tendo que lidar com as inseguranças e as incertezas acerca dessa nova experiência. No passado de Woody Brown, pai de Rusty, identificamos as sementes de uma vida familiar frustrada: uma relação amorosa traumática na juventude. O escape nos livros, nas viagens espaciais da ficção científica, leva à descoberta de que a solidão é um mesmo vazio, seja em Marte ou aqui na Terra.
O adolescente Jordan Lint é o valentão que causa terror no personagem-título. Mergulhamos profundamente em sua história, desde o nascimento, os traumas da infância, o luto e suas relações conturbadas – com a família, com o mundo ao redor. Também com ele, avançamos no futuro, até o fim de sua vida, por um caminho tortuoso, repleto de falhas e remorsos. Os reflexos do passado na construção de laços e na relação futura com os próprios filhos.
Por fim, Joanne Cole é uma professora negra numa escola – e numa vizinhança – predominantemente branca. Em paralelo à necessidade de conquistar espaço, demarcar seu lugar, em um contexto marcado pelo preconceito racial, Joanne empreende uma busca por quase toda sua vida adulta na tentativa de preencher um vazio.
Contrastes
É curioso como a arte de Chris Ware, composta por traços limpos e preenchidos com cores vibrantes, parece contrastar com a melancolia presente ao longo de suas páginas. Desta maneira, o autor tem um trabalho gráfico particular e surpreendentemente inventivo. Assim, nos perdemos na infinidade de detalhes presentes em cada uma de suas páginas. Há momentos em que Chris tenta nos guiar na leitura dos quadros, noutros nos perdemos – para nos encontrarmos – no mar de experimentações gráficas de seu autor. “Rusty Brown” exige um exercício de calma e atenção ao nos aventurarmos no experimentalismo de suas páginas: tarefa totalmente recompensada ao final da experiência.
Ware é muito engenhoso na construção narrativa, seja nos saltos no tempo ao longo das histórias ou na maneira como laços – ora frágeis, ora firmes – interligam os dramas de seus protagonistas. Nos quadros, o artista aposta em ângulos não convencionais. Há momentos, por exemplo, em que enxergamos através dos olhos de seus personagens. Se Woody quebra a lente dos óculos, passamos a observar, como ele, o mundo fraturado ao seu redor: parte nítido, parte embaçado. No início da narrativa dedicada a Jordan Lint, Chris Ware faz um trabalho genial, ao mostrar o seu nascimento, os primeiros estímulos externos e o início de seu aprendizado. Ele faz isso por meio de pontinhos que pouco a pouco dão forma ao personagem e ao mundo que o cerca.
Poder da empatia
“Rusty Brown” é um daqueles trabalhos que merecem a alcunha de obra-prima. Uma leitura inesquecível sobre a empatia, sobre as marcas que deixamos nos outros e aquelas que carregamos conosco ao longo de toda a vida. Acredito ser impossível não se identificar com, ao menos, uma de suas tramas. Uma observação sensível sobre temas como a vida ordinária, a incomunicabilidade, o racismo e o bullying. Chris Ware não se contenta apenas em contar histórias, mas em inventar novas maneiras de contá-las. Nos vemos diante de um floco de neve, de construção intrincada e diversos pontos que se interconectam, formando uma obra singular. A sorte é que este floco não se dissolve em segundos após o contato conosco, pelo contrário: se cristaliza não só na folha, mas dentro da gente.
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Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural, sempre gasta metade do seu horário de almoço lendo um livro. Seu Instagram é @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel/)