“Mata Doce”, de Luciany Aparecida, é marcado por personagens femininas fortes e olhar para o tempo e a memória
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Maria Teresa tem duas mães. Vive com elas numa grande casa, de frente a um lajedo de pedra, na comunidade de Mata Doce, vilarejo historicamente iniciado por uma mulher negra, espaço de acolhimento mas também de disputa. Às vésperas de seu casamento, a jovem prova o vestido de noiva pela última vez, aquele momento dos ajustes finais, mas um crime trágico alterará em definitivo o presente e o futuro da personagem. “Havia sido ao meio-dia de um sábado, ao sol a pino, que Maria Teresa da Vazante tinha se visto vestindo felicidade pela última vez”. “Mata Doce” é o primeiro romance de Luciany Aparecida, publicado pela Alfaguara.
Universos femininos
A força de “Mata Doce” está nas mulheres construídas por Luciany Aparecida e na maneira como cada uma delas parece minuciosamente desenvolvida pelas mãos habilidosas da escritora: Maria Teresa, suas mães Mariinha e Tininha, a madrinha Lai, a juíza Luzia, a Mãe Maximiliano dos Santos, a bibliotecária Belisaria, a estrangeira Fatoumata. Enfim, isso para citar algumas. Luciany povoa o romance por mulheres singulares em suas lutas, alegrias e dissabores.
Cada mulher aqui parece um universo próprio que ganha novos sentidos ao orbitar outros universos tão intimamente próximos. Maria Teresa, protagonista, é uma e é muitas. Por certo, ela também é Filinha, apelido carinhoso, cheio de ternura e cuidado. Ao estrear uma nova tradição, num ambiente antes restrito aos homens, ela ganha uma nova alcunha: passa a ser Filinha Mata-Boi. “Havia sido no alvorecer de um sábado a primeira vez em que, a contragosto de suas mães, ela tinha matado um boi e esbanjado valentia em Mata Doce”. Ou seja, na jornada percorrida pela personagem nas páginas do romance, percebemos as mudanças, ora sutis, ora intensas, que carregam cada um desses nomes.
O tempo, a memória e o não-esquecimento
Luciany Aparecida escreve um romance povoado tanto pelos vivos quanto pelos mortos. Num texto que volta e avança no tempo, seguindo os tênues fios da memória, personagens outrora mortos ganham a possibilidade de uma nova vida, ao som do toque de uma máquina de escrever. “Mata Doce” é um romance sobre o tempo, sobre a memória, sobre o não-esquecimento. “O tempo era soberano em Mata Doce. Qualquer coisa pesava. Mas contra o tempo resistia a memória, e naquele lugar o reinado era dela.”
Portanto, “Mata Doce” é a história de uma comunidade, de uma casa, das mulheres que nela residem e das mulheres que, em momentos de necessidade, encontram ali um porto-seguro.
Todos os substantivos aqui são femininos, não é à toa. Luciany Aparecida constrói um texto que é pura sororidade, costurado tanto na força quanto na delicadeza do ponto-cruz manuseado por suas personagens, permeado tanto pelo aroma doce quanto pelos espinhos do roseiral de flores brancas que toma o peitoril do casarão. Ademais, a ficção de Luciany, ao encontrar eco em outras ficções de autorias femininas negras que lhe precederam – há ali a presença essencial de Maria Firmina dos Reis, os traços de Conceição Evaristo – constrói uma voz própria, que parece saltar do campo ficcional e encontrar vida no próprio real.
Encontre “Mata Doce” aqui
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)