Depois do sucesso de “Bacurau”, novo filme de Kleber Mendonça Filho foi escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil no Oscar 2024
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Difícil ver Retratos Fantasmas e não ser remetido a filmes como “Amarcord” (Federico Fellini), “Splendor” (Ettore Scola) e “Cinema Paradiso” (Giuseppe Tornatore). Mas que fique claro: o novo longa de Kleber Mendonça Filho, é absolutamente único. Assim, a citação aos três filmes, na verdade, diz respeito ao fato de que os diretores italianos citados trabalham, neles, a questão da memória – e, de quebra, atrelada à sétima arte. Certo, no caso de Fellini, em menor dimensão. E, em todos, na chave da ficção. Já o filme Kleber Mendonça Filho insere-se no gênero documentário, em grande parte, autobiográfico. E, ao fim, há um ótimo (e rápido) flerte com o fantástico. Retratos Fantasmas vai representar o Brasil na corrida pelo Oscar 2024.
Assim, a narrativa de “Retratos Fantasmas” parte da casa onde o diretor de “O Som ao Redor”, “Aquarius” e “Bacurau”, entre outros, cresceu, no Recife, para ampliar seu escopa e, ainda, abordar o processo de descaracterização que atinge sua cidade natal. Em particular, o centro. Na verdade, um fenômeno que se replica Brasil afora. E que, como o filme aponta, se reflete também no encerramento das atividades de várias salas de exibição de filmes – no caso, os chamados “cinemas de rua”, já que os de shoppings-centers seguem se multiplicando, para o bem e para o mal.
“O Fim das Coisas”
Aqui, uma pequena digressão se faz pertinente. Em Belo Horizonte, o pesquisador Ataídes Braga, graduado em História pela UFOP e mestre em cinema pela UFMG, lançou, no final dos anos 1990, o livro “O Fim das Coisas”. A publicação – cujo título tomava emprestado o do poema de Carlos Drummond de Andrade – enfocava justamente o número expressivo de salas de cinema que a capital mineira perdeu no curso dos anos, não obstante ser uma cidade jovem. Muitas delas, transformadas em igrejas evangélicas, enquanto o imponente Cine Metrópole, na rua da Bahia, derrubado para virar uma agência bancária. Direcionado aos ditos “filmes de arte”, o Pathé, outro espaço icônico, virou um estacionamento. Assim, a fachada, que segue mantida, só aumenta o saudosismo em quem viveu a época de ouro do cinema, localizado na avenida Cristóvão Colombo, na Savassi.
Memórias de Setúbal
Mas voltemos ao filme de Kleber Mendonça Filho, que teve sua première no Festival de Cinema de Cannes e, mais recentemente, a estreia nacional no Festival de Gramado. Logo no início, o espectador conhece a mãe do também produtor e crítico de cinema, hoje com 54 anos. Joselice Jucá, já falecida, era historiadora. Inquieta, chegou a reformar a casa – localizada no bairro de Setúbal – duas vezes. Já com muitas ideias na cabeça e uma câmera na mão, Kleber Mendonça Filho tratou de usá-la como cenário em muitos de seus filmes, o que ele comprova em cenas inseridas em “Retratos Fantasmas”. O cachorro que atormenta o dia a dia de Bia (Maeve Jinkings), por exemplo, é “apresentado” ao espectador do documentário. Era o cão da casa vizinha, que latia incessantemente aos finais de semana, quando seus donos viajavam.
Gatos & cupins
Mais tarde, quando a família vizinha se mudou dali e, consequentemente, o casarão ficou abandonado, duas infestações surgidas são destacadas em “Retratos Fantasmas”. Primeiramente, a de cupins, insetos que, aliás, acabaram inspirando uma das cenas mais potentes de “Aquarius”. Tal qual, uma outra, por gatos. Frise-se: como narrador, Kleber Mendonça Filho ressalta que adora animais, em particular, cães e gatos. Aliás, há cenas em que ele aparece acarinhando um felino. Mas, no caso citado, eram gatos demais, como o diretor assinala, usando, ainda, uma expressão irreverentemente mal humorada (digamos assim).
Fale de sua aldeia…
Já na segunda parte, o centro de Recife se torna o foco. E, neste percurso pela transformação do espaço urbano, com a consequente descaracterização e degradação, aparecem cenas de filmes de outros diretores, caso de “A Febre do Rato”, de Claudio Assis. Assim, ao falar de sua aldeia (para citar Leon Tolstói), Kleber Mendonça Filho, mais uma vez, fala de outros lugares. Basta lembrar que ele filma as inúmeras farmácias distribuídas a cada esquina de Recife. Ou seja, fenômeno constatado em outras partes do Brasil. Ao mesmo tempo, a proliferação das igrejas pentecostais.
Momento “emoção”
Um dos recortes emocionantes de “Retratos Fantasmas” flagra a história do projecionista Alexandre Moura. Na verdade, em entrevista à revista “Híbrida”, Kleber Mendonça Filho contou que, durante a faculdade (ele cursou jornalismo), chegou a fazer dois documentários. Um deles, batizado de “Um Homem de Projeção”, era justamente sobre Alexandre Moura. A iniciativa também continha cenas do cinema Art Palácio, aproveitadas no documentário de agora. Aliás, a história do Art Palácio daria um filme por si só, sobre a relação com a produtora e distribuidora alemã Universum Film AG, a Ufa. Logo, com o objetivo de propagar os ideais nazistas.
Do mesmo modo, outro momento tocante é quando Kleber Mendonça compartilha uma entrevista concedida pela mãe. A cena final, parece dizer que mesmo o que desaparece, continua ali, a nos conduzir. Mas, aí, a interpretação é livre, pois a resposta exata, só mesmo o diretor pode dar.
Antigo X novo
Em um espectro mais amplo, Kleber Mendonça Filho, em “Retratos Fantasmas”, acaba por reforçar, sem tom de discurso, a importância da preservação (da memória e/ou do patrimônio material). Logo, algo premente em um mundo no qual uma corrente muito poderosa (e numerosa) parece determinada a passar como um trator pelo que é considerado “antigo” – e, nessa lógica, ultrapassado. Portanto, que deve ser demolido para dar lugar ao novo. Ainda que esse “novo” corresponda, por exemplo, a unidades de redes de farmácias coladas a unidades de redes concorrentes, em um perfilamento sui generis e tristonho. Escancaradamente, um retrato de uma sociedade doente.
Confira, a seguir, o trailer do filme