Curadoria de informação sobre artes e espetáculos, por Carolina Braga

Em mostra, artista Priscila Rezende transmuta a violência doméstica em arte

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Selecionada do Ciclo de Mostras 2023, Priscila Rezende expõe, no BDMG Cultural, seis trabalhos, em variados suportes

Patrícia Cassese | Editora Assistente

Em cartaz no BDMG Cultural desde o último dia 20 de julho, a exposição “Aqui Jaz”, da artista belo-horizontina Priscila Rezende, reúne seis trabalhos em variados suportes que, no conjunto, abordam principalmente a questão da violência contra a mulher. Iniciativa que se insere no bojo da programação do Ciclo de Mostras 2023 da instituição, a exposição traz trabalhos em fotografia, performance e videoperformance. Um “detalhe” por trás do processo de criação artística de Priscila é que ele foi norteado por experiências que ela própria vivenciou, enquanto mulher vítima de violência.

Priscila Rezende, que mostra seus trabalhos no BDMG Cultural (Dynelle Coelho/Divulgação)
Priscila Rezende, que mostra seus trabalhos no BDMG Cultural (Dynelle Coelho/Divulgação)

Na verdade, não é nem que a traumática experiência pessoal transpareça nas obras de forma inconsciente. “Eu tenho colocado essas questões de violência, inicialmente de violência doméstica, de forma totalmente intencional mesmo. Então, trago questões sobre situações que já vivenciei”, pontua Priscila.

Relação conturbada

Vale dizer que o agressor contumaz de Priscila Rezende faleceu em 2021, vítima de um câncer. “Ele era uma pessoa violenta e agressiva comigo, assim como com algumas outras pessoas que moravam com a gente. Porém, era uma pessoa conhecida da vizinhança e muito religiosa. Assim, como ia sempre à igreja”, comenta ela. “Inclusive, muitas pessoas tinham a convicção de que se a gente não se dava bem, é porque eu era o problema”.

Priscila Rezende, em trabalho da série “Genesis 3:16, que está na mostra (Edilaine Pereira/Divulgação)


No velório, Priscila inclusive se lembra de ter visto uma coroa de flores com uma faixa com o nome do abusador, seguido dos dizeres: “Exemplo de caráter e integridade”. De pronto, a artista encheu-se de indignação, mas entendeu claramente o que se passava. “Era uma faixa encomendada por amigos dele. E a verdade é que é outra relação, quando você não mora com a pessoa. Essas pessoas não estavam sob o jugo daquele homem”.

Antes de seguir em frente, é preciso explicar o motivo de muitos dos trabalhos de Priscila terem nomes bíblicos. “Eu tenho esse histórico religioso, e isso é muito relevante na minha experiência. Inclusive porque a minha relação com esse homem foi totalmente alterada pelo fato de a gente (ela e família) ter se desvinculado da doutrina religiosa que ele seguia”, esclarece.

Processo árduo

Desde que começou a dar vazão à sua faceta artista, Priscila entendeu que a arte é um veículo potente para abordar algumas das questões que a revolviam internamente. “Antes, tratava muito de questões raciais. Ainda trato. Mas essas mais específicas assim, de gênero… Penso que até pouco tempo atrás não estava preparada ainda para trazer isso ao trabalho. Porque é um processo árduo, a gente compreender essas questões conscientemente. Como falei, convivi muito tempo com esse homem. E ainda havia o julgamento dos outros, que não conviviam com ele. Então, durante anos, quando cheguei a mencionar que era agredida, sentia um certo julgamento. De fato, até hoje, para muitos, a mulher é sempre culpada”, lamenta.

No curso dos anos, aliás, Priscila entendeu que seria até mais “fácil” não comentar as situações que vivenciava. “Justamente porque sentia que sempre ia ter esse julgamento. Mas, em determinado momento, comecei a entender que não existia justificativa para as agressões”.

Conscientização

Ela comenta que nem saberia dizer se o fato levar essas questões para as obras pode conscientizar outras mulheres. “O que posso dizer é que acho importante (falar sobre este tema). Porque a gente vive em uma sociedade que não incentiva que as mulheres falem sobre isso. Certo, hoje existem mais campanhas, né? Há uns 25 anos, quando comecei a vivenciar essas situações, sequer se falava em violência psicológica”, diz ela, acrescentando que, na maioria dos casos, antes da violência física, vem a psicológica. “A moral, verbal, a humilhação. Geralmente, só depois vêm as agressões físicas”.

Outro motivo que a faz se expressar pela arte foi a consciência de que não está sozinha. “Infelizmente, isso acontece muito mais do que a gente imagina. E aí, quando a gente partilha, acho que isso ajuda um pouco a lidar com isso, e se fortalecer. É um apoio mesmo, para outras mulheres. Que, assim, elas saibam que também podem falar (sobre o assunto). Às vezes, há mulheres que não têm nem ideia de como fazer algo, como sair dessa situação. Partilhar, acho, ajuda, ao menos a vislumbrar caminhos”.

Confira, a seguir, outros trechos da entrevista

A partida do abusador

“Então… Sobre a morte dessa pessoa, é muita coisa para elaborar, né? Embora eu não vivesse mais na mesma casa com o abusador”, diz Priscila. Ela conta que nutria um temor de encontrar com o abusador na rua ou em determinados lugares. “Como eu não falava mais com esse homem, não acompanhei (o processo do doença). Só recebi notícias muito tempo depois, quando ele já estava quase morrendo. Quando soube que havia partido, foi inevitável lembrar dos momentos de violência que eu vivi”.

Trauma

Priscila avalia, ainda, que entendeu o impacto da partida do abusador um bom tempo depois, quando pode dar seguimento a esferas de sua vida. “Porque o trauma dessa violência era muito grande. Eu tinha muito medo. Medo de outras pessoas, medo de outros homens. E isso impedia que eu me sentisse à vontade para poder lidar com outras questões da vida, sabe? E aí, só consegui fazer isso depois que esse homem faleceu, porque, para mim, ele era a representação da violência”. Agora, lá se vão dois anos da partida dele. “Mas é óbvio que tenho plena consciência de que a violência contra a mulher não acabou no mundo. Infelizmente, existem vários homens como ele”.

A Priscila, hoje

“É difícil dizer quem é a Priscila Rezende hoje (risos). Sei lá, acho que amanhã eu posso estar de outro jeito, ser outra Priscila Rezende. Mas eu creio que sou uma Priscila Rezende mais segura. Eu sou uma Priscila Rezende sobrevivente. E é isso”.

Serviço

Mostra “Aqui Jaz”, de Priscila Rezende

Período: Até 3 de setembro

Onde: Galeria de Arte BDMG Cultural (Rua Bernardo Guimarães, 1.600, Lourdes)
Horário: Diariamente das 10h às 18h. Quintas-feiras: das 10h às 21h.

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