Já exibido em festivais como o CineBH e Forum.doc 2023, o documentário de Marcos Pimentel entra em cartaz
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Produção documental mineira que entra nesta quinta-feira em circuito, “Amanhã”, de Marcos Pimentel, lança o foco sobre a vida de dois moradores – Júlia Maria e Cristian – do Aglomerado Santa Lúcia/Morro do Papagaio em dois momentos distintos. Primeiramente, quando os dois ainda eram crianças, em 2002, e, depois, passados 20 anos, ou seja, em 2022. Na verdade, há um terceiro personagem, José Tomás, que mora a poucas quadras de Julia Maria e Cristian de Miranda, porém, inserido em uma realidade bem distinta: a dos bairros de classe alta e média alta da região, como o São Bento. Outra presença constante na narrativa é a de Cristiana Santos, a adorável mãe de Júlia e Cristian.
No citado recorte inicial, o filme acompanha a amizade entre os três garotos. Ocorre que, já adulto, José Tomás não quis participar do desenlace do documentário. O que, diga-se, não afetou o resultado: um filme tocante, sensível e que ecoa, sem ser panfletário, os abismos sociais existentes no Brasil. Exibido em festivais como 17º CineBH e no 27º Forumdoc, “Amanhã” arrebanhou, no mês passado (fevereiro), a menção honrosa no 5º Pirenópolis Doc. Produzido pela Tempero Filmes, o longa de Marcos Pimentel é distribuído pela Descoloniza Filmes.
O início de tudo
Em entrevista ao Culturadoria, Marcos Pimentel conta que o início de toda a empreitada, em 2002, coincide com a chegada dele em BH. “Sou de Juiz de Fora, e, na verdade, já estava habituado a vir várias vezes a Belo Horizonte, pois tinha parentes aqui. Mas, naquele período, resolvi efetivamente me mudar para cá. E quando chego, começo a permitir que me perder pela cidade, para tentar entender mais algumas coisas (da dinâmica da capital mineira)”, relembra.
Assim, um dos lugares o qual ele começou a ir com certa constância era a Barragem Santa Lúcia. “Era aquele papo de chegar para fazer caminhada… Porém, comecei a entender processos (que ocorriam na região) que me pareceram preocupantes. A Barragem Santa Lúcia tem a coisa de escancarar diferenças sociais. Claro, não só lá, outros lugares da cidade também. Mas ali, no entorno, estão bairros como o Vila Paris e São Bento, que são de classe média alta. E, do mesmo modo, (está) um local cheio de fragilidades”, diz Pimentel.
Linha divisória invisível
No meio de tudo isso, existe a lagoa (formada pelo represamento do córrego do Leitão, ocorrido nos anos 1960). Em torno dela, lembra Pimentel, uma pista circular. “Comecei a observar que as pessoas que moravam nos pontos mais abastados, no São Bento ou Vila Paris, iam lá, se exercitar, mas não o faziam o percurso na pista completa. Assim, em certo ponto, davam a volta. Era como se houvesse uma linha pontilhada, invisível, que dividisse a barragem ao meio. Ou seja, as pessoas da caminhada ocupavam um lado. E as da favela, mesmo que eventualmente descessem, que ficassem no parquinho ou promovessem bailes, em outro. Desse modo, cada um de um lado. E isso, naquela fase de virada de milênio, me pareceu estranhíssimo, um apartheid mesmo”.
Ao decidir ter aquele recorte urbano como ponto de partida de um documentário, Marcos Pimentel optou por mostrar crianças que, conquanto nascidas na mesma região, viviam em realidades diametralmente opostas. “Optei por trabalhar com crianças pelo fato de elas não terem (nesta etapa da vida) preconceitos. Porque, na verdade, somos nós (adultos) que os introjetamos nelas”.
Amizade e inocência
Então, nesta fase inicial de “Amanhã”, cada um dos dois, digamos assim, “lados”, foi conhecer a vida do outro. “E as crianças foram ótimas, se entenderam super bem. Claro, houve alguns estranhamentos – aliás, o filme fala o tempo todo de gente que, ao mesmo tempo que geograficamente está próxima, está distante. Assim, ali, a gente estava propondo romper as tais barreiras invisíveis”. Mas um primeiro problema se sobrepujou ao roteiro traçado na cabeça de Marcos Pimentel: Cristian simplesmente sumiu.
“Para não perder o dispositivo, centrei a narrativa em Julia. E foi maravilhoso, foram encontros incríveis (entre Júlia e Zé Tomás)”. Marcos Pimentel rememora que, ali, os dois juraram que seriam amigos para sempre. E, desse modo, as filmagens daquele período foram encerradas.
Inquietação
Até então, Marcos Pimentel confessa que não tinha uma ideia bem delineada do que ia acontecer com aquele material inicial. “Mas (aquilo vivido) foi tão forte que passei os anos seguintes repetindo frases das crianças, contando a experiência. Foi muito intenso”. Ele lembra que, em certo momento das cenas iniciais, Cristian está em um campinho que hoje nem existe mais – atualmente, é uma unidade de uma grande rede de supermercados. “Em um momento, lá, em 2002, Cristian olha para a gente e fala: ‘Vocês vão voltar amanhã?’. E a gente, que é documentarista, sabe que visita os locais, passa um tempo com os personagens, mas, quando acaba, vai embora, é a vida que segue. No entanto, aquela pergunta dele ficou soando em mim, porque não sabia se iria voltar. Fiquei com essa inquietação”.
Não bastasse, no curso dos anos, Marcos Pimentel acabou se cruzando com Cristian, muitas vezes em situações nem sempre positivas. “Como tentando furtar em sinais (de trânsito). Todas as vezes, eu o chamava pelo nome, ele se assustava e corria”. Desse modo, foi crescendo, no cineasta , a ideia de que sim, ele tinha que voltar ao Morro do Papagaio. “E o país foi mudando tanto e tão rapidamente, que, passados 20 anos, vi que era o momento ideal para voltar”.
De uma Copa à outra
Em 2022, o Brasil estava saindo da pandemia, enquanto as eleições presidenciais para o mandado 2023-2026 estavam em vias de acontecer. Não bastasse, Marcos Pimentel acabou filmando, neste intervalo, de uma copa do mundo a outra. “Assim, as mudanças pelas quais aquelas crianças passaram representam, de certa forma, o que esse país viveu”. No entanto, como dito, José Tomás não quis participar da nova etapa. “A gente sentiu muito, mas, na verdade, para mim, ‘Amanhã’ é um filme da Júlia e do Cristian. Foram eles que ficaram esperando a nossa volta. Então, optamos por não interromper o projeto mesmo uma das partes envolvidas lá, no início, ter decidido não continuar”.
Altos e baixos
Na nova jornada, Marcos Pimentel teve que lidar com altos e baixos. “Em dado momento, a própria Júlia se compara a uma montanha-russa. Ela lida com a depressão. Assim, em alguns momentos da filmagem, desaparecia, dava um perdido. São coisas que vou revelando ao longo do processo”, diz. O cineasta também ressalta que, na retomada, a formação da equipe era outra. Composta, vale dizer, por muitas pessoas do próprio Morro do Papagaio, como Gabriela Matos.
Perguntado sobre como recebeu a negativa de Zé Tomás, primeiramente Pimentel diz ser muito a grato a ele e aos pais, que, lá atrás, receberam a proposta super bem. “A opção dele foi a de não entrar agora, então, não forçamos nada. Respeito a decisão”. Em certa medida, o filme é muito os dois – Júlia e Cristian – fabulando sobre o amigo de infância. Inclusive, mostra os irmãos indo às redes sociais para tentar encontrá-lo e ver o que aconteceu na vida do antigo amigo. “Em certo momento, diante da recusa, sinto que a Julia tenta defendê-lo”, diz o diretor.
Parâmetro com o Brasil atual
No entanto, Marcos Pimentel entende que o rumo que a empreitada tomou tem muito a ver com Brasil atual. “Mas, na verdade, uma das reflexões que faço é que o Brasil sempre foi um país dividido. E uma das coisas que mais me interessam são as reflexões geradas a partir da questão: ‘que modelo de cidade a gente quer para a gente'”. Neste ponto, ele cita um momento do filme, ainda na primeira etapa, a de 2002, quando um segurança de um shopping center aborda Julia nos corredores do complexo. “São várias linhas. Como quando a Cristiana fala das várias vezes nas quais ela pede über e, quando o motorista chega, não aceita subir, ou nem mesmo para”.
Na verdade, Pimentel entende que o racismo é uma ferida não sanada da sociedade. “As cidades são muito desiguais, não pensadas para abraçar a tudo e todos. Olha o que aconteceu com a residência da Cristiana (o filme mostra um processo de desapropriação, no qual ela perde tudo o que construiu). Simplesmente chegam e arrancam as famílias de uma hora para a outra… Porque isso sempre acontece em áreas de vulnerabilidade, e não em bairros como o Mangabeiras?”, argumenta.
Exibições
Perguntado se Júlia e Cristian já assistiram ao filme finalizado, tal qual Cristiana, a mãe dos jovens, Marcos Pimentel diz que sim. “Aconteceram duas sessões, uma na Associação Casa do Beco e outra, no Festival Papagaio Cultural. A Cristiana inclusive foi com a outra filha, com os netos”. Tais sessões, abertas ao público, lembra ele, são extremamente importantes, posto que boa parte da população não consegue ir aos cinemas por conta dos altos custos envolvidos, do deslocamento ao preço dos ingressos propriamente ditos.
Confira, a seguir, o trailer
Sobre Marcos Pimentel
Documentarista formado pela Escuela Internacional de Cine y Televisión de San Antonio de los Baños (EICTV – Cuba), Pimentel e especializado em Cinema Documentário pela Filmakademie Baden-Württemberg, na Alemanha. Também é graduado, no Brasil, em Comunicação Social (UFJF) e Psicologia (CES-JF). Diretor e roteirista de documentários que ganharam 95 prêmios por festivais nacionais e internacionais e foram exibidos em mais de 700 festivais de 52 países. Desde 2009, é professor do departamento de documentários do curso regular da Escuela Internacional de Cine y Televisión de San Antonio de los Baños (EICTV – Cuba).
Ficha Técnica
Direção: Marcos Pimentel
Com Cristian de Miranda, Cristiana Santos, Júlia Maria
Depoimentos/Imagens de Arquivo: Cristian de Miranda, Cristiana Santos, Júlia Maria
Produção: Luana Melgaço e Vinícius Rezende Morais
Fotografia: Gabriela Matos
Montagem: Ivan Morales Jr.
Som: Vitor Coroa e Pris Campelo
Gênero: Documentário
País: Brasil
Ano: 2023
Duração: 106 minutos
Classificação Indicativa: 14 anos