Crítica em diálogo é um experimento proposto pelo Culturadoria para a crítica de teatro. Mais que uma relação unilateral, acreditamos na potência da conversa. Por isso, convidamos a atriz, dramaturga e diretora Ana Regis a participar desse diálogo crítico sobre Peixes.
Peixes, por Carolina Braga
Peixes não é um espetáculo fácil de se ver. Incomoda. Causa sensações até físicas.
Mas certos temas são necessários de serem levados ao palco, mesmo com toda dificuldade que podem carregar. O espetáculo com texto, atuação e direção de Ana Regis fala sobre abusos de homens contra mulheres. Diversos. Fácil, portanto, não é. Mas é extremamente necessário.
Discorrer mais sobre a temática da montagem seria comprometer a experiência do espectador. Para não correr o risco de dizer mais do que se deve, vamos ater à análise da peça e seus elementos teatrais.

O início
Ana Regis recebe o público, conversa, tudo normal. Assim que as pessoas se acomodam, a atriz (não a personagem) informa que contará a história de Cláudia, uma mulher que vive em um manicômio judiciário. Para que a peça comece, ela precisa de um voluntário que aceite fazer o papel do médico. Assim que ele (ou ela) se apresenta, a personagem “invade” a atriz.
É como se informasse, com uma leve mudança no tom de voz e no corpo que, a partir daquele momento fosse teatro. A questão que torna a peça ainda mais interessante é que, no caso de Peixes, ficção e realidade se misturam. Ou seja, a Cláudia pode ser ficção mas o que ela diz não. Todo o texto é baseado em rigorosa pesquisa feita pela dramaturga a partir de depoimentos e reportagens.
Sendo assim, faz sentido a postura real da atriz antes e depois espetáculo. Ana e Cláudia também se misturam, assim como o real e o ficcional, ainda que se proponha um exercício de distanciamento para a plateia. É uma simbiose calculada.
O texto
A dramaturgia é elaborada. As primeiras informações que a personagem apresenta ao médico/público são que ela não sabe nadar e não consegue dormir. No caso, podemos considera-las dispositivos, já que carregam um sentido que vão além daquilo que precisa ser dito naquele momento. Aliás, o texto contém diversos dispositivos que se desdobram.
Os peixes, por exemplo. Seja quando aparece em palavras ou em desenho, tem muito a dizer. Funcionam como quebras, sinais que Cláudia dali não consegue seguir. Para, toma água, muda de assunto, acrescenta outras figuras (o tio, a avó, a mãe, a aluna, o marido) à narrativa. Retoma e aos poucos vai surpreendendo mais e mais a plateia.
O texto é elemento principal de Peixes. Isso porque todos os outros recursos teatrais – interpretação, cenografia, iluminação – existem em função dele e para reforça-lo. Talvez por isso a presença de um convidado em cena parece muito mais um recurso para apoiar a interpretação do que algo propriamente necessária à encenação. Tem pouco a acrescentar a não ser oferecer mais um elemento de jogo para a atriz.
O cenário tem apenas uma mesa, duas cadeiras e algumas canetas espalhadas, vermelhas, azuis e pretas. A iluminação é o recurso utilizado para marcar tempos e espaços. Como os cortes temporais estão na luz, eis aqui mais um dispositivo que a montagem apresenta ao espectador. As mudanças de cor (para o azul) e de temperatura, por exemplo, sinalizam, entre outras coisas, passado e presente.
Interpretação
Não há dúvidas do quanto Ana Régis domina sua criação. Ela apresenta nuances vocais e corporais que potencializam cada intensão do texto. Em pequenos gestos e mudanças no tom de voz, sem caricaturas, entendemos que a Cláudia, que hora parece ingênua e infantil, é fruto do meio, de uma sociedade que ainda não conseguiu combater o machismo.
Por mais que se trate de um espetáculo sobre um tema tão forte como o abuso, Peixes consegue ser preciso nas metáforas e nas literalidades. Sem ser panfletário, o monólogo é sutilmente militante. Sacode.
A peça termina, mas o discurso não. O real ganha dimensão. Outra dimensão, bem mais incômoda. Com a plateia frequentemente atônita (vi a peça duas vezes para escrever), Ana Régis revela que são histórias que realmente aconteceram na vida de alguém, fala sobre a importância da denúncia e chama atenção para o fato de, mesmo em 2018, o machismo ainda ser uma chaga social. O feminismo, por outro lado, é uma luta. Vamos lutar!

Diálogo com Ana Régis
Peixes nasce como texto em 2015. A primeira versão veio assim, de uma vez só. E daí seria mais fácil, afinal, a reescrita é o trabalho de modelar, lapidar, trocar palavras, expressões, trocar trechos de lugar, cortar, enfim…. cuidar do texto. Geralmente retomo um texto escrito por mim, após 1 ou 2 semanas. E assim foi com Peixes. Mas não consegui ler o texto. Não consegui chegar ao final. E assim foram todas vezes que tentei. Em 2 anos consegui mexer no texto 3 vezes. E só depois que fui pra cena, em 2017, é que ele tomou a forma final como é apresentado. Fui para a cena para conseguir tocar no texto de forma efetiva e sem cerimônia. E na cena aconteceu a mesma coisa. Chegava um ponto do texto que nem conseguia falar. E o ensaio terminava ali.
Ao contrário de todo processo de criação em que estive, em Peixes, tive que me fechar para deixar Cláudia chegar. Tive que endurecer. E só assim fui vendo o quanto Cláudia é encantadora e como ela vê belezas no mundo e em sua história, sua história dura. Tudo isso pra dizer que eu entendo, literalmente, que não é um espetáculo fácil de ver.
Em busca da beleza
Lembro de pouco antes de estrear, ter ido assistir ao espetáculo Nigthvodka, de Eid Ribeiro. É muito forte, e saí arrasada do teatro pela temática. E saí também encantada com a beleza do espetáculo, não só do tema, mas com a encenação, o forte de Eid. E fiquei pensando: onde está a beleza de Peixes? A beleza está em Cláudia.
Chamar uma pessoa da platéia para assumir a figura do medico – digo figura por que não é assumir o personagem e nem a persona – foi a saída que encontrei para estabelecer a quarta parede. Queria a quarta parede, porque queria que o espectador fosse observador e visse o tamanho da impotência de quem só observa. E não queria Cláudia falando sozinha. Não queria que as pessoas pensassem que Cláudia é louca simplesmente. A loucura poderia diminuir ou descredibilizar sua leitura de mundo. Sim, ela está num manicômio, mas por um surto episódico, e não estrutural. Surto esse, ao qual ela foi levada. Por isso optei por um interlocutor.
E assim foi. Fico feliz por considerar que Peixes carrega uma bandeira sem ser panfletário. Agradeço a leitura sensível e o olhar atento.