É difícil não se emocionar com a saga de Pacarrete. Se tiver um time de pessoas que se desestruturam depois de conhecer a história da mulher que defende com unhas e dentes o poder da arte, faço parte dele. Talvez por isso, o longa de estreia de Allan Deberton, exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes tenha batido tão forte. Como Emicida disse neste episódio do podcast Mamilos, “é preciso lutar contra a pobreza de espírito”. À sua maneira – bastante peculiar – é o que Pacarrete faz.
Ainda bem que a estreia no circuito comercial já está com data marcada para abril, pois o longa é daqueles necessários. Sobretudo no Brasil de hoje. Marcélia Cartaxo vive a personagem título. É uma senhora, que morou durante muitos anos em Fortaleza, mas voltou para Russas, a cidade natal no interior, para cuidar da irmã. Vive, então, entre os cuidados dela, Chiquinha (Zezita Matos), as brigas com a empregada Maria (Soia Lira) e a amizade – ou seria paixonite – com o dono do bar Miguel (João Miguel).
Personagem
Pacarrete, inspirada em uma história real, é adepta dos discos de vinil e tem entre os programas preferidos assistir no videocassete as apresentações Anna Pavlova. E mais: ela quer ser como a bailarina russa. Ama música erudita e defende com unhas e dentes a necessidade da ARTE – em caixas altas.
Tem tanta convicção disso que se oferece para a secretária de cultura do município para se apresentar na festa de aniversário da cidade. Pacarrete quer criar um balé especialmente para a ocasião: O Ballet de Pacarrete. Mas poucos dão ouvidos. É ignorada, inclusive, pela responsável pela festa. O argumento: não tem como Pacarrete apresentar um balé em uma festa que só tem forró. “É uma festa mais popular”, como disse a secretária.
Trama
Até este ponto, a fotografia do filme tem cores fortes. Pacarrete é uma mulher “esquentada”, mas também vaidosa e firme em seu propósito artístico. Com um figurino mais lindo do que outro que nos ajudam a dar conta de que a protagonista parece viver em outro tempo. A partir da negativa da secretária, tudo muda de cor. Literalmente. E a história de rumo também. É aí que a interpretação de Marcélia Cartaxo parece explodir na tela. Que atriz!!!
Quem acompanha a história do cinema brasileiro, olha para a cara dela e logo se lembra da Macabéa da adaptação de A Hora da Estrela, livro de Clarice Lispector para o cinema. Com o papel, ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim em 1986. Embora não tenha trilhado a mesma carreira internacional, a potência de Pacarrete é parecida. No caso, foi do festival de Gramado em 2019 que Marcélia saiu merecidamente carregada de Kikitos.
Sim, muito da força de Pacarrete está na potência da interpretação. Mas o filme de Allan Deberton propõe uma discussão bastante atual. As entrelinhas nos fazem refletir não apenas sobre o papel da arte na sociedade de uma maneira geral, mas também sobre uma questão ainda mais triste: restará público para a cultura? A conclusão a que Deberton nos propõe é dilacerante. Mais ainda por não se distanciar tanto da realidade.
A equipe do Culturadoria está em Tiradentes a convite da Mostra de Cinema.