Novo filme de Elza Cataldo, ‘Órfãs da Rainha’ mostra três irmãs que passam a ser perseguidas com a chegada da Inquisição no Brasil
Patrícia Cassese | Editora Assistente
O público que for às salas de cinema para assistir ao filme “Órfãs da Rainha”, nova investida da diretora mineira Elza Cataldo, que estreia nesta quinta-feira em BH, certamente vai se impressionar com o impressionante trabalho de reconstituição de época.
Evidentemente, o que está em primeiro plano é a história – e o que ela, nas entrelinhas, tem a dizer não só sobre o passado, ao qual se reporta, mas também quanto ao presente e mesmo ao futuro.
Mas é missão quase impossível não se atentar ao que está ali, como moldura, corroborando para dar verossimilhança à trama. No caso, cenários e figurinos, por exemplo.
Situada no século XVI, a trama de “Órfãs da Rainha” tem como acontecimento central a chegada da Inquisição Portuguesa ao Brasil, em particular, o impacto dela em uma pequena vila da Bahia – a fictícia Vila Morena.
Num plano ainda mais fechado, na vida de três irmãs, representantes das chamadas “órfãs da rainha”.
As órfãs
Órfãs da rainha, vale lembrar, é a denominação dada às primeiras mulheres que vieram de Portugal, na maioria das vezes contra a vontade, com a missão de se casarem e, consequentemente, povoarem o Brasil Colônia.
No longa, elas são simbolizadas pelas irmãs vividas por Letícia Persiles (Leonor), Rita Batata (Brites) e Camila Botelho (Mécia).
A chegada do inquisidor de Heitor Furtado de Mendonça (Celso Frateschi) ao vilarejo instaura um tempo de insegurança na vida das três moças, que já haviam sofrido a violência de terem sido arrancadas de Portugal, após seus pais serem vítimas do Tribunal do Santo Ofício. Em um país estranho, as três ainda lutavam para se adaptar, quando tudo muda repentinamente.
A Inquisição, como se sabe, visava punir aqueles acusados de terem cometido heresias. A mais visada dentre essas eram as chamadas práticas judaizantes dos cristãos-novos.
“No caso do filme, eu parti deste fato histórico (as órfãs da rainha) e juntei com a chegada da Inquisição. Então, o filme é uma ficção, mas vale dizer que escolhi nomes de órfãs reais para as personagens. Achei importante prestar essa homenagem”, assinala Elza Cataldo, ao Culturadoria.
Essas mulheres vêm para o Brasil para constituir família, mas, no caso das três irmãs fictícias, uma delas não se casa por ter uma deficiência física. “À época, havia uma conotação infeliz e triste, a de que pessoas com deficiência física podiam trazer má sorte”, frisa a diretora.
A outra se casa com um homem muito violento, o que traz à cena uma outra questão muito importante, a violência contra a mulher (praticada dentro de casa). “Cada uma vai ter um destino diferente”.
O Brasil Colonial
Conhecida pelo apreço ao cinema de viés histórico, Elza Cataldo conta que seu interesse pela temática das orfãs da rainha teve início ainda durante as suas pesquisas para o longa “Vinho de Rosas”, de 2005.
À época, uma de suas fontes de consulta mais recorrentes era o “Dicionário do Brasil Colonial 1500-1808” (Objetiva, 2000), do historiador Ronaldo Vainfas, especialista em Inquisição. E foi justamente nele que Elza descobriu o verbete “órfãs da rainha”.
“Achei que dava um tema interessante para um filme, mas a ideia ficou guardada por um bom tempo. Fui fazendo outras coisas, caminhando com outros projetos, até porque, esse era muito complexo”, revela ela. A complexidade situava-se primeiramente pelo próprio período em que ocorreu, no citado século 16.
“(O roteiro, assinado por ela junto a Pilar Fazito e Newton Cannito) Demandou uma pesquisa muito grande, assim como um planejamento apurado. Inclusive porque há poucas edificações (remanescentes) do século 16, principalmente com as características necessárias para contar essa história”, coloca a diretora mineira.
Tocantins, Minas
Elza ressalta que a narrativa de “Órfãs da Rainha” demandava um cenário que mostrasse pequenas casas construídas umas junto às outras, com uma capelinha em um ponto mais alto e, ainda, um engenho. Características, portanto, bem específicas. “Depois de muito tempo pesquisando locações, achamos melhor construir uma cidade cenográfica”, diz Elza.
E a escolha para o local recaiu sobre Tocantins, cidade situada na zona da mata mineira (terra natal de Elza). “Foi um processo muito trabalhoso (a construção do vilarejo), demandou muito tempo. Mas nos deu a possibilidade de uma geografia, de um conceito espacial que atendesse o nosso objetivo”.
Este processo consumiu dois anos (2018 e 2019). “Na verdade, no período de pré-produção, eu li dezenas de livros, fiz viagens a Portugal e à Espanha, morei na Bahia… Tudo para entender o contexto da história. Mas foi só a partir de 2017, quando conseguimos o primeiro patrocínio, que começamos a finalizar roteiro, direção de arte e figurino”.
O advento da Covid-19
Elza lembra de um fato simbólico. No dia seguinte ao término das filmagens, foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 no Brasil. “Se demorássemos um pouco mais ,não conseguiríamos fazer”.
Por conta dos recursos tecnológicos hoje disponíveis, a etapa de pós-produção acabou sendo imediatamente iniciada, mesmo com a quarentena instalada. “Trabalhamos à distância, nestas etapas de montagem, na parte conceitual dos efeitos… E quando a pandemia acalmou, foi possível nos reunirmos novamente”.
Elenco
Além dos atores já citados, o elenco de “Órfãs da Rainha” traz alguns integrantes do grupo Galpão: Inês Peixoto, Teuda Bara e Eduardo Moreira.
“Na verdade, o processo da escolha do elenco foi gradual e realizado por processos diferentes. Assim, o nome de algumas atrizes e atores já estava na minha cabeça desde o momento da escrita do roteiro. Caso da Inês, da Teuda e do Eduardo Moreira, com quem inclusive eu já havia trabalhado antes”, explana ela.
O nome de duas das atrizes que fazem as órfãs da rainha – Rita Batata e Camila Botelho – foram indicados a Elza pela atriz, diretora e dramaturga Fafá Rennó. “Recebi o material delas, analisei e conclui que sim – porque cinema, como a gente sabe, também é physique du rôle. Me aproximei delas e confirmei (as expectativas)”, ratifica a diretora.
Letícia Persiles
Já a atriz Letícia Persiles, que vive a Leonor, entrou um pouco depois no trabalho. “Conhecia o trabalho dela, claro, principalmente em (na minissérie) ‘Capitu’, que é lindo. Até tinha outras opções para a Leonor, mas, com ela, tudo se encaixou”.
Letícia, diz ela, tinha as características físicas e de interpretação da personagem, além de cantar muito bem – “há uma cena do filme na qual a personagem canta”, situa Elza. Ela acrescenta que também contou com a ajuda de Inês Peixoto na interlocução com o elenco de “Órfãs da Rainha”.
“E aí fui fazendo as outras escolhas pouco a pouco. A verdade é que eu gosto muito de trabalhar com atores. Mesmo para o elenco de apoio, faço questão de trabalhar com atores profissionais. Acho que faz uma grande diferença. Alguns não tinham experiência em cinema, mas sim, em teatro, então, acaba sendo uma oportunidade para eles também”.
O cast de “Órfãs da Rainha” traz, ainda, os nomes de Alexandre Ciolette, Juliana Carneiro, Jay Batista, Luiz Gomide, Carlos Magno, Elisa Santana e da já citada Fafá Rennó.
Consultoria
Elza Cataldo assume que adora se enfronhar na história do Brasil. “Tenho experiência com pesquisa, trabalhei na Universidade, então, gosto, tenho afeição. Embora eu não seja historiadora. Mesmo assim, sempre gosto de trabalhar com consultoria. Em ‘Órfãs da Rainha’, foram cinco (pessoas)”.
Entre eles, o já citado historiador Ronaldo Vainfas, especialista em Inquisição; Mary del Priori, especialista em história das mulheres; e Uri Lam, que é rabino. “A Mary, inclusive, virou uma grande amiga, foi muito importante para a discussão da história das mulheres. Já o Uri, me auxiliou nas questões da cultura judacia e rezas em hebraico”.
Tema atemporal
Elza Cataldo analisa que a chegada da Inquisição no Brasil pode ser vista como um marco inicial da intolerância no país. “Antes, dizia-se que o Brasil era um país sem lei e sem rei. Com a chegada da Inquisição, foram estabelecidas normas, perseguições, acusações. E eu quis mostrar como às vezes essa intolerância se revela em regras completamente inusitadas, diante das quais você olha e pensa: “Meu Deus, por quê isso?'”, argumenta.
Assim, ela considera que o filme traz uma história fictícia baseada em fatos que aconteceram no século 16, mas que tem ecos até hoje. Elza acrescenta que, na sua opinião, analisar o passado pode ajudar um povo a entender o presente. “Costumo dizer que um filme é, antes de tudo, um elemento de diálogo. Além de entretenimento, por ser um filme de ficção, ‘Órfãs da Rainha’ também quer estabelecer um ponto de diálogo, uma reflexão”.
Trajetória em festivais
Antes da estreia em Belo Horizonte, “Órfas da Rainha” participou de alguns festivais, tendo sido premiado na 14ª edição do Toronto International Women Film Festival, no Canadá. Também foi selecionado no Festival Judaico de Washington e recebeu duas premiações em Los Angeles.
No Brasil, a trajetória de “Órfãs da Rainha” na tela grande, em circuito comercial, começa pela capital mineira. “É a cidade onde moro e na qual boa parte também equipe também reside”, diz Elza, sobre a escolha.
“Achamos que seria importante trabalhar este filme pontualmente, primeiramente por aqui, BH, e depois em Brasília, Salvador, Rio e São Paulo. Na sequência, as demais capitais”.
Ao fim, Elza Cataldo aproveita para convidar as pessoas a conferir “Órfãs da Rainha”. “Porque é um filme bem diferente, que leva o século 16 para as telas, que retrata aquela época. E que foi feito com muito cuidado, dedicação e amor ao cinema. Então, espero que as pessoas tenham essa experiência”, diz, animada.