“O mito do mito: de fã e de louco, todo mundo tem um pouco” traz a própria artista como protagonista de “autoficção no divã”
Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Rita Lee deixou um livro póstumo. Não foi o acaso ou o destino que impossibilitou que a artista não lançasse em vida a sua derradeira (será?) obra literária. Foi uma escolha consciente. “(…) entreguei o livro a ele e pedi que cuidasse do lançamento, mas com uma condição: só depois de morta. Artista morto vale mais, tem uns que viram até mito. Além do mais, não quero ninguém me perguntando de meras coincidências com fatos ou pessoas reais. Escritora-mistério”, ela nos diz no prólogo deste “O mito do mito: de fã e de louco, todo mundo tem um pouco”, publicado pela Globo Livros. Nada mais Rita Lee do que isso.
Autoficção
Espécie de romance psicanalítico, mergulha nas águas da autoficção para imaginar uma Rita Lee no divã – ainda que não necessariamente sentada em um divã, mas você me entende – frente a um doutor nada convencional, em uma longa consulta num casarão antigo no centro de São Paulo.
Rita Lee e Dr. Eric von Kasperhauss. Terapeuta e paciente, uma das dualidades marcantes dessa breve narrativa. A outra dualidade se dá entre fã e ídolo. Dois lados de uma mesma moeda. Duas condições interdependentes. Um precisa do outro para existir, para se alimentar, para crescer forte e saudável – ainda que, não poucas vezes, um e outro, fã e ídolo, cresça de maneira nada saudável, não é mesmo?
“— Percebo que você, como fã, não tem cura.
— É. Nem quero. Minha vida seria besta sem meus ídolos.
— Mas o que diremos de quem é fã da madame?
— Meus fãs são realmente criativos e especiais. Sinto um ligeiro desconforto quando gastam dinheiro comigo, me dando presentes. Às vezes, acho que não mereço tanta atenção.”
James Dean
Na condição tanto de fã – o seu primeiro ídolo, de muitos, foi James Dean. Ela, inclusive, nos conta ter feito, ao lado da irmã, parte de um “fã-clube das viúvas” do ator morto tão precocemente, rendendo para as duas alguns calendarios de brinde com fotos do artista – quanto de ídolo – arrastando multidões ao longo de sua carreira – Rita se debruça sobre esses dois papéis, colecionando e, quem sabe, reimaginando exemplos retirados de sua própria trajetória neste breve romance póstumo. É o interesse no enigma do fã que leva Lee ao consultório do misterioso Kasperhauss.
“— Só enlouquece quem tenta decifrar. Melhor tentar entender. Mas gostaria de saber os detalhes daquilo que imagino ter trazido você até aqui. E é o que deve estar enlouquecendo você. O enigma do fã. Do mito.”
Para quem já mergulhou nas autobiografias de Rita Lee, no quesito histórias, “O mito do mito” não parece trazer muita novidade. Mas é um prazer reencontrar a voz de Rita em texto – parece impossível lê-lo sem ter a voz da cantora nos acompanhando – relembrando, por exemplo, acontecimentos como o seu encontro com David Bowie – olha a Rita Lee fã aí de novo. Leitura breve e carregada do bom humor sagaz ritaleeano, esse romance póstumo é um presente. De ídolo para fãs.
Encontre “O mito do mito: de fã e de louco, todo mundo tem um pouco” aqui.
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)