É sempre uma sensação maravilhosa quando somos surpreendidos por uma peça de teatro. Não que antes não reconhecesse seu valor. Mas é diferente quando o espetáculo te pega de uma maneira que não supunha. Aconteceu comigo com Nu de botas, montagem em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil de BH até o dia 01 de maio. Ri e não foi pouco.
Dirigido por Cristina Moura, Nu de botas é baseado no livro homônimo de Antônio Prata. Se a literatura dele por si só carrega graça, a transposição para o palco tem outros valores. Tem um elenco profundamente sintonizado com o desafio tornar possível – e bastante amigável – o encontro do teatro com a literatura, respeitando a potencialidade de cada expressão artística.
Não há adaptação do livro para o palco. No máximo alguns cortes. O texto que os atores dizem em cena tem exatamente as mesmas frases e palavras escolhidas por Prata para narrar a própria infância no livro. Poderíamos dizer que é uma vertente daquilo que o diretor Aderbal Freire-Filho chamou de Romance em cena. No caso seria crônica em cena.
Sendo, portanto, crônica em cena, a montagem valoriza o acordo tácito – e sempre potente – entre palco e plateia sobre os códigos teatrais. Um simples copo d’água pode representar uma onda do mar, assim como cadeiras viram automóveis, adultos são crianças, mulheres são homens e por aí vai.
É um jogo vivo. O imaginado é mais forte que o real. Assim como na mente de qualquer criança.
Equilíbrio entre os elementos da cena
A relação entre teatro e literatura também aparece explícita no cenário assinado por Radiográfico. A casa embrulhada em papel craft é uma referência metafórica da memória do protagonista sobre a residência cor ocre da infância. Em diversos sentidos Nu de botas aposta na representação de um imaginário. Quem não guarda memórias de infância?
Todos os atores interpretam Antônio. A dramaturgia de Cristina Moura e Pedro Brício cuida de, aos poucos, aproximar o público da dinâmica proposta pela peça. Todos nós devemos embarcar na cabeça daquela criança, nas relações que estabelece com a família, os amigos e o mundo. Se no início os monólogos são mais marcados, a medida que a montagem estreita a cumplicidade com o espectador tudo se mistura.
Neste momento fica claro o quanto Luciana Paes, Isabel Gueron, Thiare Maia/Keli Freitas, Pedro Brício e Renato Linhares realmente se apropriaram da dinâmica do texto de Antônio Prata para dar vida à ele. As melhores comédias são sempre aquelas que os atores não apenas se divertem fazendo mas que dão indícios de que não se levaram tão a sério na hora de criar. Deixaram o adulto de lado para reencontrar com a criança que cada um carrega. É o que garante leveza ao resultado final.
Assim como a sutil passagem entre uma crônica e outra na construção dramatúrgica, a trilha sonora e a iluminação são precisamente discretas. Ambos elementos contribuem para a narrativa, mas sem chamar grande atenção. Destaco a versão de Creep, do Radiohead, feita por Domenico Lancelotti. A canção surge para marcar as cenas e não passa despercebida.
Um recurso pouco explorado e que não acrescenta muito à narrativa é o vídeo. A peça sobrevive muito bem sem as imagens.
O espetáculo tem uma trajetória de humor ascendente. Todas as crônicas escolhidas tem seu valor mas as melhores – na minha opinião, claro – ficam da metade para o final. Foi quando eu disparei a rir e quase não parei. A comédia do cotidiano de Antônio Prata é simples e sofisticada, ao mesmo tempo.
Shakespeare nas dunas, África, Ca Ce Ci Co Çu e Blowing in the Wind, o impagável passeio familiar ao pico do Jaraguá, são os textos que ao visitar o universo do teatro demonstram o quanto encontro com a literatura não é somente possível mas pode ser bastante prazeroso.
SERVIÇO
[O QUE] “Nu de Botas”, com direção de Cristina Moura. [QUANDO] 07 de abril a 01 de maio,às 20h. [ONDE] CCBB (Praça da Liberdade, 450,Funcionários,BH, (31) 3431-9400). [QUANTO] R$ 20 (inteira) R$ 10 (meia).