Inspirado no livro homônimo, “Nostalgia” foi filmado no Rione Sanità, em Nápoles, e traz, como protagonista, o excelente Pierfrancesco Favino
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Passadas quatro décadas desde que saiu de Nápoles, e agora aos 54 anos de idade, Felice Lasco retorna à terra natal. Atende, assim, a uma sugestão (ou premonição) da esposa, ao lado de quem vive com conforto no Cairo, já completamente integrado ao mundo árabe. Ao chegar ao destino, Felice percebe que, em um espectro mais amplo, muitos aspectos do bairro onde nasceu continuam como antes, mesmo após tanto tempo. No entanto, no curso dos dias que marcam a volta a Rione Sanità, muitas surpresas (e decepções) o aguardam. É assim “Nostalgia”, filme de Mario Martone que entra em circuito nesta quinta, 5 de outubro, tem início.

O longa-metragem italiano chega agora aos cinemas brasileiros na esteira de ótimas credenciais. Primeiramente, vale lembrar que trata-se de uma adaptação do livro homônimo do napolitano Ermanno Rea, que tem o excelente ator Pierfrancesco Favino como protagonista. E, ainda, que o filme foi ovacionado por praticamente dez minutos em Cannes, onde participou da seleção oficial, em 2022. Não bastasse, “Nostalgia” foi o filme indicado pela Itália na tentativa de figurar na lista dos indicados a filme estrangeiro.
Reencontro
Voltando ao enredo de “Nostalgia”, a primeira surpresa de Felice neste retorno se dá quando ele bate à porta do apartamento da família e se depara não com a mãe, como esperado, mas, sim, com um núcleo de habitantes que lhe é totalmente desconhecido. Sem entender nada – mesmo porque, a chegada do personagem claramente não foi vista com bons olhos pelos atuais moradores -, Felice sai à cata da genitora tendo a indicação que ela está no térreo. Logo, ele encontra Teresa (magistralmente interpretada pela atriz Aurora Quattrocchi, de 80 anos, que encara com elegância e despojamento a cena que exige o corpo desnudo, sem filtros e retoques) em um apartamento pequeno, no qual a luz exterior mal adentra.
Não só. Ainda sem entender o que a fez sair do apartamento original da família, Felice percebe, ainda, que a mãe praticamente não enxerga mais, e, não bastasse, deixa a dever bastante nos hábitos de higiene pessoal. Não por outro motivo, ele é impulsionado a sair para comprar produtos de limpeza, para, assim, incumbir-se do banho dela, apesar do constrangimento declarado de Teresa em ficar nua na frente do filho. Do mesmo modo, o celular que Felice havia deixado para ela foi abandonado.
Nas ruas de Sanità
Para além das quatro paredes do apartamento da genitora, em “Nostalgia”, não demora também para que Felice se surpreenda com eventos que acontecem logo ali, nas ruas. Por exemplo, grupos de jovens que circulam armados, em motos, por vezes atirando para o alto, e, assim, espalhando o horror. Como um flâneur, tentando reconhecer o terreno no qual transcorreu a etapa inicial da vida, Felice anda pelas ruas observando o cotidiano de Sanità. Assim, se detém, por exemplo, na figura do pároco Don Luigi Raga (Francesco Di Leva), que, logo no início do filme, insiste em rezar uma missa mesmo tendo sido aconselhado a não fazê-lo. Tal qual, percebe que há um capo que dá as ordens por ali., espalhando o terror.

Até este ponto de “Nostalgia”, não se sabe o real motivo que o impeliu a deixar a cidade, ainda adolescente.
Atenção, a partir do próximo parágrafo, há informações que podem ser entendidas por alguns como spoilers.
Decisão
Dando um caráter premonitório ao conselho da esposa (em certo ponto de “Nostalgia”, Felice agradece a ela por ter insistido na viagem), a mãe de Felice acaba falecendo. No entanto, em vez de retornar ao Cairo, como era o plano inicial, o personagem se vê tentado a permanecer na cidade, inclusive procurando um imóvel para se instalar. Também começa a se aproximar de um antigo pretendente da mãe, e, tal qual, dos jovens que são atendidos por Don Luigi, de quem, aliás, se torna amigo.
O passado
É por meio de uma confissão ao pároco que o verdadeiro motivo que fez Felice deixar a Itália há 40 anos vai vindo à tona. Assim, assustando inclusive os que agora estão ao entorno de Felice – caso do próprio Don Luigi. Aconselhado a voltar o mais rápido possível para o Cairo, Felice, na contramão da racionalidade, se mostra cada vez empenhado em ficar. E, ainda, disposto a levar, do Cairo para Nápoles, a esposa, para ali fixarem residência. A mesma obstinação ele demonstra para rever o amigo de adolescência, Oreste (Tommaso Ragno), com quem, aliás, dividiu o fatídico episódio que o fez deixar o país. Naturalmente, haverá um preço a pagar por tanta teimosia.
Mudança de planos
Mas o que faz com que Felice, tendo chegado à cidade onde nasceu decidido a apenas visitar a mãe para, depois, partir, mude de ideia e passe a querer, com tanta insistência, e, a despeito de reiterados avisos, ficar? Bem, para o espectador que avança pela narrativa, o acerto de contas com o passado parece se tornar quase uma obsessão. No entanto, este seria um gatilho disparado quando ele efetivamente já estava com os pés novamente fincados em Sanità. Assim, circundado pela atmosfera, se contagia a ponto de não ter mais como sair dali.
Raízes
Ao mesmo tempo, a atitude de Felice vai ao encontro das inúmeras narrativas que emergem mundo afora no que tangem a imigrantes. Pessoas que, mesmo tendo, no caso do personagem central de “Nostalgia”, estruturado a vida com êxito em outro país (no caso de Felice, ele inclusive se converteu ao islã), não conseguem romper o vínculo com a pátria. Mesmo que, de início, terem logrado êxito na nova terra. Vale dizer que, da mesma forma, não são poucos os descendentes de imigrantes que embarcam para a terra originária dos antepassados na tentativa de um reconhecimento de raízes, de pisar o terreno de onde vem a árvore genealógica da família. Aliás, atualmente os cinemas do Brasil estão justamente exibindo um belo documentário que se filia a este caso, “Marinheiro das Montanhas”, de Karim Aïnouz.
Evidentemente, no caso de quem deixou um país (ou seja, aqui, não estamos nos referindo mais a descendentes, mas ao imigrante), há aqueles que, por motivos diversos, de fato estão convencidos a jamais voltar. E, quando por um motivo ou outro, são obrigados a pontualmente retornar, a viagem só faz ratificar a certeza de que, ao partirem, lá atrás, fizeram o certo. Aliás, um bom filme neste sentido é “Cidadão Ilustre”, de Mariano Cohn e Gastón Duprat. Nesta narrativa ficcional, temos um escritor argentino, vencedor do Nobel, radicado há 40 anos na Europa. No entanto, ele volta ao povoado no qual nasceu para receber o título de Cidadão Ilustre. Porém, a experiência não será das melhores.
Realismo
De todo modo, Martone constrói um personagem idealista e romântico, que acredita no poder de cada um em mudar, se não o mundo, um pouco da realidade ao entorno. Portanto, um papel difícil, mas que a performance de Pierfrancesco Favino torna extremamente crível, sem incorrer em uma construção caricatural do personagem. Assim, aqueles que se interessam por um cinema que recorta um lugar do mundo em particular para falar de pertencimento, raízes, cidadania e amor à terra, mas sem edulcorar a realidade e se ater a cartões-postais, apostando numa trama que se conecte a situações reconhecíveis em qualquer lugar do mundo, vão claramente entender a duração dos aplausos dados a “Nostalgia” em Cannes.

E, bem, partindo da premissa de que nada melhor para entender um filme do que ouvir o que o próprio idealizador ensejou com ele, vale reproduzir, com o devido crédito, uma fala de Martone ao MyMovies. “O espaço no qual filmamos está fora do tempo, é um faroeste, tem algo de mitológico. Por exemplo, em Sanità existem catacumbas. Assim, para muitos, ainda hoje é um ‘vale dos mortos’, um lugar de fantasmas, em suspenso entre o presente e o passado. Ao mesmo tempo é um lugar vivo. Tivemos que criar relações fortes em torno do protagonista, levando para dentro do filme a realidade vivida no set”.
Suspense
Faltou dizer, ainda, que, a partir do momento em que Felice é identificado como uma pessoa em risco severo, “Nostalgia” também adquire contornos de suspense. Isso porque o espectador é, de certo modo, “convocado” a adentrar o time dos que temem que a personalidade temerária e a credulidade de Felice acabem por lhe custar a vida. Assim, há momentos em que a respiração fica em suspenso, assim como o corpo, hirto, na poltrona.
Confira, a seguir, o trailer
Confira, a seguir, curiosidades da produção *
(fornecidas no material de divulgação do filme, enviado à imprensa)
- Nascido em Roma, Favino, protagonista de “Nostalgia”, contou que o maior desafio para o papel foi aprender o dialeto napolitano. “Na Itália, há um enorme respeito pela língua napolitana. Todos os nossos dramaturgos vêm de Nápoles. E há uma história incrível de atores napolitanos que sempre admirei. E eu estava cercado por napolitanos, então, não só tive que aprender, mas também temi o julgamento deles.” Além disso, ele também aprendeu um pouco de árabe para o filme, pois seu personagem vive no Oriente Médio.
- O diretor explicou que busca, em “Nostalgia”, algo muito próximo da atualidade, deixando o longa aberto aos acontecimentos durante a filmagem. “Fiquei fascinado com a ideia de fazer um filme não dentro de uma cidade, mas dentro de um bairro. Assim, como se fosse um tabuleiro de xadrez. Por isso todas as ruas, casas e indivíduos que aparecem no filme são exclusivamente do Rione Sanità, um bairro napolitano separado do mar.”
- Para conseguir a naturalidade e desbravar o bairro, o diretor de “Nostalgia” conta que convidou elenco e equipe a andar pelas ruas. Logo, a se perder naquele lugar, como um labirinto, e, só assim, começar a entender o que realmente era Sanità. “Com a câmara nos ombros, começamos a caminhar pelas ruas, na nossa interpretação do cinema da realidade. Encontro após encontro, vida após vida, história após história. Acabamos filmando a última cena nos perguntando qual seria o seu significado, e não conseguimos encontrá-la. Talvez não haja sentido, talvez nunca tenha havido. Existe o labirinto e existe a nostalgia, que é o destino de muitos, e talvez de todos nós”.