Outro dia ouvi no podcast Mamilos de férias uma curiosa categorização para os filmes. Há os “batata frita”, fast-food e aqueles que realmente alimentam o espectador de alguma forma. Para você saber se acaba de ver um ou outro, o exercício é simples. Se nunca mais pensar no que assistiu, foi batata frita. No Coração do Mundo, a nova produção dos mineiros da Filmes de Plástico, definitivamente está no outro grupo.
É um cinema que sustenta. Você vai se pegar pensando nele em algum outro momento da sua vida. Mesmo que a realidade registrada na tela não tenha diretamente a ver com a sua.
A produtora que nasceu em Contagem comemora 10 anos de atividade em 2019 e também por isso será homenageada pela próxima edição da Mostra CineBH. No Coração do Mundo é um sinal da maturidade não apenas de seus diretores, Gabriel e Maurílio Martins, mas de toda a cadeia de profissionais que gira em torno deles. Sim, pessoal, qualquer tipo de cinema movimenta uma cadeia, emprega muita gente, e o que vemos na tela é um crescimento qualitativo do audiovisual que se faz em Minas Gerais.
O roteiro
A trama de No Coração do Mundo se passa no bairro Jardim Laguna, em Contagem. Foi lá que os diretores cresceram. Sendo assim, faz parte da natureza deles, inclusive da memória afetiva de cada um, o modo como as pessoas se relacionam, como ganham a vida, buscam seus sonhos e desejos. São sujeitos a procura de cotidianos menos sufocantes.
Assim como em outras produções da Filmes de Plástico, há um equilíbrio na forma como os diretores e roteiristas usam humor para refletir a própria realidade. Assim, a crítica a um contexto social cercado de violência existe, mas parece leve. Na verdade, só parece porque ela é sim suficientemente profunda.
Na trama, Marcos (Leo Pyrata) precisa convencer a namorada Ana (Kelly Crifer) a participar de um assalto planejado por Selma (Grace Passô). Até chegar no crime propriamente dito, os diretores nos apresentam um ensaio antropológico sobre a periferia. Por isso, me pareceu pertinente a mistura da ficção com o documental logo no início do filme. Aquela história pertence tanto a Marcos, Ana e Selma como também aos anônimos que aparecem, a Gabriel e Maurílio Martins.
O elenco
Apesar de trabalhar com não atores e alcançarem homogeneidade nessa mistura, é o elenco profissional de No Coração do Mundo que chama atenção. É muito bom ver rostos conhecidos dos palcos de BH na tela. Melhor ainda é se dar conta do quanto dominam a diferença da interpretação do teatro para o cinema.
Isso vale, sobretudo, para Kelly Crifer (Ana) e Grace Passô (Selma), que estão na linha de frente. Elas criam personagens cujas nuances aparecem até na respiração, na forma como olham o horizonte e revelam sentimentos daquelas mulheres. Com uma estrada maior no cinema, Bárbara Colen segue a mesma linha. O que vale também para breves – mas marcantes – participações de Gláucia Vandeveld, Rejane Faria e Christiane Antuña. Que deleite ver o embate entre a personagem de Chris e Kelly no ônibus. E MC Carol? A funkeira de Niterói se revela uma atriz e tanto.
Olha que curioso: mesmo que Léo Pyrata tenha chamado a atenção e Eid Ribeiro, como ator, sufocar o espectador sem falar uma palavra, destaquei mais o trabalho das mulheres. Talvez porque o papel delas no cotidiano da periferia (e não apenas) seja mais marcante. Digamos, fundamental.
Técnica
No Coração do Mundo é um filme que tem ritmo. Mesmo na parte em que apresenta as personagens, há uma cadência que prende o espectador. Isso se deve a uma curiosa dinâmica comum na Filmes de Plástico. Seus integrantes se revezam em diversos papéis. Gabriel e Maurílio Martins, por exemplo, são os montadores do longa. Gabriel também montou Temporada, outra pérola do catálogo da produtora de Contagem. E é a edição que dita o ritmo, né?
Vale comentar, ainda, a direção de arte e pesquisa de locações. O contraste periferia x zona sul aparece, mas sem que seja a representação glamourizada desse contraste. Os diretores fazem rir com cafonices presentes nos dois universos. Só para citar um exemplo: a cena de abertura com o carro de mensagem romântica.
Enfim, por que o filme No Coração do Mundo prova o amadurecimento do cinema mineiro? Por sua capacidade concretizar na tela, com excelência técnica, a máxima de Tolstói. Foi o russo quem disse, fale de sua aldeia e estará falando do mundo. Gabriel e Maurílio partiram do coração do próprio mundo e conseguiram ser universais.