“Mussum, o Filmes” teve uma sessão gratuita, dentro da Mostra de Tiradentes, que lotou a praça, na noite do domingo, 21 de janeiro
Patrícia Cassese | Editora Assistente
O fato de a sessão de “Mussum, O Filmis” na 27ª Mostra de Tiradentes ter ocorrido em um espaço público – o Largo das Forras -, neste domingo (21 de janeiro) à noite, com acesso gratuito à população, foi indiscutivelmente motivo de alegria para o diretor, Silvio Guindane. Isso por conta de, tempos atrás, ter sido o dia da semana e o “turno” (digamos assim) no qual o programa que consagrou o ator Antônio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum (1941-1994) era veiculado na TV (Globo, no caso). Sim, estamos falando de “Os Trapalhões”, atração que por mais de duas décadas levou riso aos lares brasileiros (sendo 18 anos desses na emissora dos Marinho; enquanto os anteriores, na extinta TV Tupi).
Como mesmo as pessoas das novas gerações (que nem eram nascidas na época) bem sabem, além de Antônio Carlos, o quarteto principal da atração se completava com a presença de Renato Aragão, Dedé Santana e o saudoso Zacarias (1934-1990). Protagonizado por Ailton Graça, “Mussum, O Filmis”, estreou em novembro de 2023 no Brasil. Antes, teve uma première no 51º Festival de Gramado, onde angariou nada menos que seis Kikitos. No caso, as estatuetas de melhor filme, melhor ator (para Ailton Graça), melhor atriz coadjuvante (Neusa Borges), melhor ator coadjuvante (Yuri Marçal), trilha musical e filme pelo júri popular, além de uma menção honrosa.
Relação com a mãe
Mas, que fique claro: o filme não se debruça sobre a história do icônico grupo, criado pelo produtor, diretor e apresentador Wilton Franco. “Seria material para no mínimo dois filmes”, brincou Silvio Guindane (que está em Tiradentes para o festival) na coletiva de imprensa que aconteceu nesta segunda-feira. Ou seja, um dia após a bem sucedida exibição de “Mussum” na Mostra Praça, que, previsivelmente ficou lotada, com pessoas de todas as idades.
O foco, aqui, é a vida de Antônio Carlos, com ênfase particular para relação do artista com a mãe, Dona Malvina (vivida por Cacau Protásio e, depois, pela fantástica Neuza Borges). Para tal finalidade, o longa não se envereda pelo gênero comédia, mas, sim, se filia ao melodrama. Desse modo, emocionou plateias Brasil afora quando da exibição em cinemas. Tal qual agora, quando começa carreira nas plataformas de streaming, como o Now. Em breve, “Mussum, o Filmis” estará no catálogo da Globoplay, porta de entrada para a exibição na TV aberta, na Globo, o passo seguinte.
Reflexão, debate, riso, emoção
Na entrevista, Guindane – que, vale dizer, começou a trajetória como ator no filme “Como Nascem os Anjos” (1996) – celebrou o fato de, por meio da Mostra de Tiradentes, poder apresentar, em praça pública, uma produção que contempla os elementos que dão calço ao que ele entende como o conceito de cinema. Ou seja, a capacidade de gerar reflexão e debate, mas, tal qual, divertir. E, ao mesmo tempo, emocionar. Aliás, o próprio Guindane confessa que ainda se emociona (e chora) a cada vez que assiste ao filme.
“Mussum, o Filmis” filia-se à cepa das produções que podem ser assistidas por toda a família. E, mesmo revelando dores (racismo, a perda de um filho e, tal qual, a da mãe, que lhe gerou um quadro de depressão), não se trata – frisa Guindane – de um longa que objetiva mostrar a história de um “preto sofrido”. “O filme se torna popular não só a partir da figura do personagem Mussum, dos Trapalhões, embora seja uma biografia. Na verdade, na minha opinião, o que fica do filme é a relação de um filho com a mãe em um país no qual tantas pessoas sequer sabem o nome do pai”.
Furar barreiras
De modo geral, Guindane entende que uma característica que faz com que um filme efetivamente chegue ao público é quando ele se envereda pelo humano. “Aí sim, fura as barreiras”. E faz um comparativo. “Quando o espectador não está ali, sentado na cadeira, prestando atenção na estética – por exemplo, se o diretor se utilizou de um plano sequência -, mas, sim, ri e se emociona, é porque o filme aconteceu”.
Bilheteria
Perguntado sobre a performance do filme nas bilheterias, Silvio Guindane conta que a estreia de “Mussum, o Filmis” foi bastante positiva. Inclusive, tendo angariado o título de melhor abertura do ano (para filme brasileiro), com 35 mil ingressos vendidos. No entanto, ele lamentou a coincidência de acontecimentos que, involuntariamente, acabaram por interromper uma reta ascendente. Um desses foi a vinda, ao Brasil, da cantora norte-americana Taylor Swift, posto que, em decorrência do burburinho por ela gerado, muitas salas de cinema investiram na exibição de “The Eras Tour”, sobre a turnê da norte-americana.
Não só. Naquela semana, uma chuva torrencial assolou a cidade de São Paulo (uma praça importante para a exibição do filme), o que, claro, dificultou a locomoção. E, não bastasse, ainda houve a final da Libertadores (4 de novembro). “Ou seja, na nossa cabeça, o dia 2 de novembro seria uma boa data por uma série de fatores. Primeiramente, pelo fato de ser o mês da Consciência Negra. Além disse, era início do mês, quando boa parte das pessoas recebe o salário, e, ainda, feriado (Finados)”. Mas vieram os citados contratempos. Do mesmo modo, para ele, o filme “Nosso Sonho”, sobre a dupla Claudinho & Buchecha, que estreou em setembro do ano passado, poderia ter um alcance maior ainda do que teve.
“Pegar pelo pé”
Perguntado sobre a questão do racismo dentro de “Mussum, o Filmis”, Silvio Guindane disse que o tema, claro, emerge organicamente, mas sem discursos panfletários. Mesmo porque, entende ele, a ideia é se comunicar não só com o público que compartilha as mesmas posições e opiniões, mas, e principalmente, com o que pensa diferente. “Fazer o movimento de se comunicar apenas com quem já concorda com você, acredito, será sempre algo limitado. Assim, é importante ‘pegar pelo pé’ aqueles que, para citar um exemplo, mandam a gente (referindo-se à população negra) usar o elevador de serviço (em vez daquele que ainda hoje é conhecido como “social”). A arte tem essa função”, diz.
Cota de tela
Sobre a questão da implementação da chamada cota de tela para o cinema nacional, Silvio Guindane ponderou que a demora no trâmite só enfraquece a indústria cinematográfica brasileira. “Se a gente não tem políticas que garantam a exibição dos filmes aqui produzidos, fica muito complicado. Os países mais evoluídos do mundo têm (políticas de proteção ao cinema)”.
Campeões de bilheteria
Ele também não se furtou a falar dos chamados filmes brasileiros campeões de bilheteria, muitas vezes protagonizados por atores globais e tendo o viés da comédia como chamariz. “Toda vez que me fazem essa pergunta (sobre o que acha de comédias brasileiras que fazem muito sucesso), sempre falo que sou fã de todas. Todas (acentua a voz). Eu adoro ver a Ingrid (Guimarães), a Tatá (Werneck), o (Leandro) Hassum enchendo cinemas do que o Adam Sandler – que, aliás, é maravilhoso. Só que a diferença é que a Ingrid, a Tatá e o Hassum são brasileiros. Assim, estão gerando dinheiro aqui, empregando gente aqui, fazendo o nosso cinema crescer”.
Ciclo
E pormenoriza. “É o filme deles que paga os chamados filmes de arte, pois o dinheiro da bilheteria deles retorna à Ancine. E, assim, a gente pode ter, por exemplo, um filmaço do (diretor) Claudio Assis, ter um filmaço da Laís Bondansky. Então, a gente precisa ter esse nível dos filmes grandes, que patrocinam, geram esse dinheiro para ter o fundo para trermos os filmes de discussão. O Gustavo Dahl é que dizia isso, ou o filme chega no grande público ou tem retorno em festivais – seja no Brasil, no mundo. Assim, gerando discussões. O filme que fica no meio do caminho é que é o problema”.
No caso, Guindane lamenta que há filmes que não chegam nem aqui (conseguindo ser vistos pelo grande público) nem lá (carreira em festivais). “A ausência da cota de telas faz com bons filmes fiquem no meio do caminho”. No entanto, ele se considera feliz com a caminhada de “Mussum, o Filmis”. “Além de termos ido bem em Gramado, a gente está viajando bastante com ele. E o que acho que é mais importante: é um filme que me faz ter orgulho. Acho que será um filme que vai ficar – pelo menos espero que sim. Espero que em alguns anos, eu esteja aqui, em Tiradentes, divulgando outro filme, e que alguém me lembre de quando fiz ‘Mussum'”, brincou.
“Bichinho da direção”
Com essa fala, a equipe do Culturadoria pegou carona e perguntou, a Guindane, se ele foi definitivamente picado pelo “bichinho da direção” – “Mussum” foi a estreia dele na direção de longas. “Picou total”, respondeu, de pronto. “Na verdade, já há tempos. Eu já havia dirigido teatro. Um dia, tomei uma baita bronca de um amigo meu, que falou: ‘Cara, para de se boicotar'”, diz, referindo-se ao fato de ele já querer há tempos se enveredar por este caminho. “Veja, eu escrevia também (roteiros), além de ser ator, mas, na hora de dirigir, pulava fora. Acho que havia um receio de ninguém mais me chamar para trabalhar como ator uma vez que eu começasse a dirigir, enfim…”.
Seja como for, Silvio lembra que, mais novo, chegou a dirigir alguns curtas, clipes, “umas coisas”. “Mas acabei saindo do audiovisual (no que tange à direção) e fiquei mais no teatro (em se tratando desta função). E, claro, trabalhando como ator”. Mais recentemente, ele começou a dirigir televisão e série. “Aí me chamaram para o ‘Mussum'”.
Veronika
Uma das novidades na manga de SIlvio Guindane é a série “Veronika”, que será lançada na Globoplay. A produção é do Afroreggae, com José Junior como showroanner. A história se desenovela em torno de uma advogada negra, interpretada pela atriz Roberta Rodrigues. Ao todo, serão oito episódios.
Além disso, ele está dirigindo uma série para a HBO, “Clube Espelunca”. “Terminei de rodar agora. Também vou dirigir a adaptação do livro ‘O Avesso da Pele’, de Jeferson Tenório, que rodo no final do ano. E, ainda, um outro filme também, para a Downtown Filmes”.
Como ator
E no trabalho como ator, ele roda, no segundo semestre, o novo filme de Cacá Diegues. “Também estou escrevendo um monólogo. Mas, na verdade, eu estou me deixando respirar. Trabalhar, como ator, em projetos mais pessoais, nesse momento. Quem sabe eu não tomo coragem para, daqui a pouco, dirigir e atuar (no mesmo projeto). Ainda não tive a coragem que o Seltão (Selton Mello). Mas acho que uma coisa independe da outra. Confesso que tive a síndrome do vira-lata por muito tempo”.
Síndrome do vira-lata
Instado a dar continuidade ao pensamento, ele lança: “Sem fazer demagogia, mas ser preto, no Brasil, não é fácil. Sobreviver nessa profissão, então, sendo negão, não é nada fácil. Assim, a gente fica com essa síndrome, a coisa de que a gente não pode chegar lá, que a gente não pode fazer tal parada. E o pior é que é tudo muito bem organizado e pensado para a gente criar, dentro da gente mesmo, o pensamento de que a gente não pode. Para aquele punhado de gente dominar a coletividade. Sendo que a coletividade, ela é a parte mais importante da sociedade. Porque somos nós que construímos as casas, os prédios, os presídios. A gente planta o que todos comem, que costura as roupas que vestem”.
Silvio Guindane diz que o dia em que a Rocinha e o Vidigal (comunidades do Rio de Janeiro) não descerem para trabalhar, a capital fluminense vai parar. “Não terá uma loja aberta, babá, motorista de uber, de táxi, de ônibus, não tem um lixeiro”.
Neste momento, uma jornalista chamou a atenção para lembrar que, guardadas as devidas proporções, é um movimento parecido com o que as mulheres vivenciam. Guindane concordou. “Sim, e a síndrome do vira-lata é muito barra pesada. Mano! O preconceito estrutural, ele é muito complexo. Porque assim, tem o cara que ainda fala: ‘Ah, mulher no volante’. Mas, veja, esse é o tio bêbado do churrasco. Mas o cara que fala: ‘Não, não sou machista’, mas quando aquela mulher é a chefe dele… Aí é o problema. Uma mulher que tem o mesmo carro que ele, que sabe mais que ele ou quando tem o mesmo cargo que ele… Estruturalmente, é igual quanto o negro está comendo no mesmo restaurante que o branco”.
Contar histórias
Guindane imita uma voz dizendo: “Mas o que este cara está fazendo aqui?”. E emenda: “Então, a gente ainda tem muitos passos para dar. Olha, eu não sei explodir banco, dar porrada na rua, quebrar nada. Acho que toda história de ajuste no mundo abarca os movimentos radicais. Eu não sou um radical, a minha onda é contar histórias. A forma que encontrei de fazer, falar e discutir isso é por meio dos filmes”, arremata.