
O espetáculo "Desmemória América Latina" completa 10 anos desde a sua estreia em 2014 na Cidade do México (Daniel Protzner/Divulgação)
Solo da atriz e produtora Michelle Ferreira teve a Trilogia Memória do Fogo, de Eduardo Galeano, como calço
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Há exatos dez anos, o espetáculo “Desmemória América Latina” adentrou pela primeira vez os palcos, na Cidade do México. Resultado da residência artística da atriz Michelle Ferreira por lá, em trabalho realizado com o diretor, dramaturgo e ator Rodolfo Guillén, a peça, vale dizer, é inspirada na Trilogia Memória do Fogo, do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Assim, aborda questões imbricadas às culturas e identidades latino-americanas. Particularmente, abordando a falta de compreensão de grande parte dos brasileiros, que não se entendem enquanto latino-americanos. E, assim, se voltam para as culturas europeias e estadunidense.
A boa notícia é que a montagem está de volta a BH neste sábado e domingo, dias 6 e 7 de julho, no Teatro de Bolso do Sesc Palladium.
Há dez anos
Ao Culturadoria, Michelle lembra que, lá atrás, a peça estreou em um período bastante emblemático. “Isso, tanto no Brasil, com as eleições (presidenciais) já polarizadas e apertadas (no caso, entre os candidatos Dilma Rousseff e Aécio Neves), quanto no México”, diz, fazendo referência ao país no qual fazia a citada residência artística.
“No período em que estive lá (setembro a novembro), aconteceram questões sérias envolvendo o narcotráfico”, pontua Michelle. A atriz cita, por exemplo, o desaparecimento de 43 jovens em Guerrero, um caso que abalou o país e repercutiu mundo afora.
Tudo isso, complementa Michelle, afetou a obra de forma contundente. “Na verdade, de todos os meus solos, ‘Desmemória América Latina’ é a obra mais aberta e sensível ao contexto sócio-histórico do momento”. Ela lembra, ainda, a miríade de acontecimentos que se desenrolaram desde a estreia – como dito, em novembro daquele 2014. “Ou seja, quantas coisas vivenciamos desde então! E tudo isso transformou a dramaturgia e a encenação ao longo do tempo”.
Marielle Franco
Desse modo, em 2018, Michelle apresentava o solo no Fórum Social Mundial, em Salvador, quando a vereadora Marielle Franco (PSOL) foi assassinada. “Assim, absorvi isso em cena. No ano seguinte, com o governo (Jair) Bolsonaro no poder, a peça mudou sobremaneira”. No mesmo compasso, em 2022, com as eleições mais do que polarizadas entre Lula e Bolsonaro. “E agora, depois deste tempo, a peça também absorve o que ocorre no Brasil e nos nossos vizinhos da América do Sul, bem como nos demais países do território e do mundo”.
Ela se refere à ascensão dos governos da ultradireita e, tal qual, à força dos movimentos sociais. “Que, desse modo, estão mais do que na resistência, estão em luta constante”.
Fora do contexto colonizador
Mesmo com as modificações em decorrência dos acontecimentos seguintes à estreia, a dramaturgia segue tendo como base a obra de Galeano. Portanto, pertinente perguntar sobre as questões que o escritor elaborou, ali, e que seguem atuais. Inicialmente, Michelle lembra que a Trilogia Memória do Fogo demandou quase uma década de trabalho (“constante e insano”) ao autor uruguaio, falecido em 2015.
A trilogia, vale lembrar, é composta pelas obras “O Nascimento”, “As Caras e as Máscaras” e “O Século do Vento”. “Por meio dela, ele contribui, misturando e ultrapassando a hierarquia dos gêneros literários, à história das Américas a partir da visão dos povos colonizados. Ou seja, completamente fora do contexto eurocêntrico e colonizador que nos ensinaram nas escolas, e que vamos naturalizando ao longo do tempo”.
Goela abaixo
Ela entende que a obra segue sendo tão atual pelo fato de as questões abortadas serem cíclicas. “Questões que nos perseguem desde que as caravelas chegaram aqui. Ou seja, as narrativas dominantes dos colonizadores, que, reitero, vamos naturalizando. E, assim, achando que esta é a versão oficial”. Do mesmo modo, Michelle aponta a miséria e as desigualdades que, diz, são reflexo do nosso capitalismo de periferia, sempre alimentando os países ricos. “Aliás, isso só vai acabar quando derrotarmos o Deus Capital”.

Acima, outra foto do espetáculo (Daniel Protzner/Divulgação)
Michelle adiciona, a este rol, a crise climática que vivenciamos. “Tudo isso resultado do capitalismo e do modo de vida que nos empurraram ‘goela abaixo’. E, pior, a gente olha isso tudo, olha essas referências europeias e estadunidenses e quer ser isso. Ou seja, queremos ser outra coisa que não somos”.
Soy latino-americano
Desse modo, Michelle Ferreira indaga: “Quando vamos aprender a olhar para as referências mais lindas que temos que são as culturas indígenas e africanas?”. E mais: “Quando nós, brasileiros e brasileiras, vamos compreender que somos também latino-americanos? E, assim, parar de queremos encher a boca pra dizer da nossa suposta ascendência italiana, portuguesa, alemã, francesa… E, daí, entender que somos filhos e filhas deste chão? É por isso que a história segue e persegue sendo continuamente vivenciada e recontada”.
“Descanso”
Após a mais apresentação anterior da peça (“em 2022, justamente no período mais tenso, polarizado e incrível com o retorno de Lula”), Michelle resolveu dar um “descanso” para a obra. “No entanto, no início deste ano entendi que era o momento de trazer de volta o debate para cena. Assim, retrabalhei a dramaturgia, bem como a sequência das cenas”. Ela lembra que o diretor, Rodolfo Guillén, está no México. “Então, me atrevi também a revisar a encenação. Mas, claro, permanecendo com o essencial que ele generosamente conduziu no processo de 2014”.
Michelle complementa: “Entendo que, enquanto vivemos tantas questões sociais e tantos movimentos de levante na América Latina contra a extrema direita, a favor do direito dos povos originários, dos indígenas, das mulheres, das pessoas negras, da população LGBT, essa peça permanecerá viva”.
Serviço
”Desmemória América Latina”
Onde. Teatro de bolso do Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro)
Quando. Dias 6 e 7/07, sábado e domingo, às 20h
Quanto. Ingressos a R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia)
Espetáculo acessível em libras no domingo