A cantora e compositora Marina Miglio, vocalista da banda Lamparina, conversou com a reportagem do Culturadoria sobre o engajamento dela com a causa
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Reconhecidamente, um talento. No palco, como vocalista da cultuada banda Lamparina, a cantora e compositora Marina Miglio arrebata. Mas é nos bastidores que uma outra faceta importante da vida desta mineira emerge de forma destemida e empenhada: a de uma dedicada filiada à luta antimanicomial no Brasil. “Dentro dessa luta, me identifico como uma porta-voz, porque tenho um microfone e tenho a vivência”, diz ela, que, no curso da adolescência e juventude, vivenciou várias batalhas. De início, enfrentou um quadro de anorexia. Já há algum tempo, Marina convive com o diagnóstico de transtorno bipolar.
E foi justamente este lado pouco conhecido de Marina que norteou o bate-papo com o Culturadoria. Isso porque, no dia 18 deste mês, o calendário registra o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Como assinalado em matéria na Agência Brasil, “trata-se de uma ocasião para refletir sobre a reformulação do modelo assistencial em saúde mental no Brasil”. A data, vale dizer, foi criada em memória à 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 1987.
Lamparina
Nascida em Belo Horizonte, Marina Miglio, 27 anos, viveu em Teófilo Otoni e, ainda, em Alcobaça. Foi ao saber que a cantora Mariana Cavanellas estava saindo do Lamparina, e que haveria um teste para encontrar uma substituta, que Marina foi lá, na garra, e se candidatou. E o resto, os fãs da banda – que agrega, ainda, Cotô Delamarque, Calvin Delamarque, Stênio Galgani, Bino e Thiago Groove – bem sabem. Basta lembrar da repercussão de músicas como “Não Me Entrego Pros Caretas” e “Pochete”. E vieram o Lollapalooza, o Breve Festival, o CoMA…
Sendo a faceta artística, como dito, já bem conhecida, vamos, pois, a esse outro lado, tão importante quanto tocante.
Foi aos 14 anos que ela teve a primeira experiência como paciente psiquiátrica. Perguntada sobre como se deu esse encaminhamento, Marina Miglio inicialmente pondera sobre uma realidade que segue vigorando no Brasil. “Bem, na verdade, a informação sobre a doença ou sobre tratamentos psiquiátricos sempre foi colocada de uma forma distante, né? A gente acha que nunca é com a gente. No meu caso, vivi um relacionamento muito turbulento ainda muito nova, e isso desencadeou um quadro de anorexia. Hoje lido melhor com isso, o tratamento me ajudou, mas é uma eterna questão. Nunca deixa de ser”, situa.
Informação
De toda forma, Marina reconhece que o fato de ter tido acesso ao tratamento e à informação sobre o que tinha a salvou. “Por isso a importância de a Luta Antimanicomial estar em pauta nas grandes mídias. As pessoas precisam se identificar com algo na mídia que chega até elas para, assim, poderem procurar ajuda”, diz a artista, que, num segundo momento, passou a lidar também com o diagnóstico de transtorno bipolar.
Acolhimento
No caso, Marina Miglio entende que um fator que lhe deu amparo nesta vivência foi o acolhimento familiar. “Minha família é repleta de muito, muito amor, eu tenho muita sorte. Fizeram o que deram conta. Mas não existia a informação, assim como não existe ainda para muitas pessoas. Não se vê personagens com transtornos psiquiátricos em novelas, por exemplo, como se fossem pessoas literalmente excluídas socialmente”, pontua. Ainda de acordo com ela, a falta dessas pessoas sendo normalizadas causa esse estranhamento, “como se fosse algo muito distante”.
Assim, à época, a própria Marina recorreu ao Google para tentar entender o que era o transtorno bipolar. “E ainda assim tive muita dificuldade de compreensão dos termos”, lembra. Por outro lado, ela reconhece que ficou aliviada em ter um diagnóstico. Porque, dessa forma, descobri que o que eu estava passando tinha um nome e, do mesmo modo, remédio. Ou seja, não tinha cura, mas tinha tratamento. E isso já me dava muita esperança! Queria só sair do pensamento suicida. Apesar da raiva que vem com o diagnóstico num primeiro momento, pelo menos eu sabia que iria dar algum passo”. No entanto, até encontrar que acertasse a medicação, foram 12 anos.
Engajamento na questão
Neste percurso, foi de forma orgânica que ela começou a se inteirar das várias questões que os portadores de qualquer tipo de sofrimento mental no Brasil têm que lidar. E, assim, a se engajar em causas como a luta antimanicomial. “Depois de passar pela minha última internação, vivi coisas que me fizeram refletir muito sobre como essa questão é tratada no Brasil. Me interessei em procurar saber mais, queria entender por que tudo estava parado no tempo. Se aquilo era permitido mesmo, se estava acontecendo ou se era pesadelo”.
Atualmente, dentro dessa luta, ela se identifica como uma porta-voz, por ter um microfone e, tal qual, a vivência. “Assim, posso, de alguma maneira, levar a informação para algum lugar. E esse é meu objetivo! Vejo artistas de BH como o (cantor, compositor e instrumentista) Raphael Sales e me inspiro nele, no trabalho diário que ele faz nos centros de convivência, levando a arte como remédio pras pessoas. Isso, pra mim, é o verdadeiro sentido de me aproveitar da minha profissão. Ganha um significado forte”.
Confira, a seguir, outros trechos da entrevista
Avanços e retrocessos
Para Marina Miglio, o grande avanço da luta antimanicomial no Brasil foi conseguir fechar as portas dos manicômios. No entanto, ela cita, como retrocesso, o fato de que, em contrapartida, muitas instituições terem apenas mudado o nome de manicômio para comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos para, desse modo, darem sequência ao que já vinha sendo feito – porém, agora debaixo dos panos. “Por mais que a lei tenha mudado com a aprovação da Reforma Psiquiátrica em 2001, as pessoas mudaram a estratégia para continuar excluindo e abusando dos usuários da rede de saúde mental. Então, era para ter ido para frente, mas ficamos no mesmo lugar. O benefício foi que a quantidade de lugares fazendo isso diminuiu. Mas a luta continua”.
Questão coletiva
Marina Miglio também reflete que a luta antimanicomial não se configura como uma “pauta de um mês”, como o Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio. “Não é uma pauta pequena como é vista, ela está presente o tempo inteiro; a saúde mental é que manda na organização da nossa mente, que possibilita a saúde física e que protege a saúde espiritual”, explana.
Ela acrescenta que, dentro da sociedade, as pessoas são comumente colocadas em caixas. “E, dentro dessas caixas, nos dão a permissão de normalizar o fato de ‘louco’ ser um xingamento. O ‘já tomou seu remedinho?’ ser engraçado. Do mesmo modo, a ‘intervenção psiquiátrica’ (ser destinada) para pessoas maldosas, e não doentes”.
Na pele
Mais grave ainda: ela considera que o problema é muito maior do que é falado, o que só piora o fato de não existir uma preocupação. “Às vezes, as pessoas precisam sentir na pele para se sensibilizarem. Assim, é preciso ocupar lugares onde elas vão ser tocadas. Falar explicitamente sobre o tema, sem medo ou sem rotular o personagem da novela e defini-lo só como doente. É preciso entender que ter um transtorno mental pode ser normal para todo mundo para que seja normal para cada um. Porque, na verdade, é, ninguém escolhe”.
Marina lamenta constatar que muita gente se sensibiliza diante da informação de doenças físicas de algum conhecido ou de um famoso, mas que, em contrapartida, muitos confundem as doenças mentais com algo ligado à personalidade, “falta de Deus” ou até mesmo maldade. “Não tem sentido a maneira como o assunto dos transtornos mentais é tratado”.
A importância de cada um na luta
Na esfera individual, Marina diz primeiramente acreditar (e muito) no poder da palavra. “Mas também acredito no poder da ação enquanto cidadão. Procurar compreender onde se inserir na luta, como levar a causa para ser discutida em muitos lugares, procurar políticos que se interessam por ela e que contribuem. Acredito muito no poder de que isso se torne uma discussão tão grande como a política, porque é dentro dela que existe a luta”. Abaixo, Marina, em foto de Cissa Otoni (Divulgação)
Fique ligado!
A reportagem do Culturadoria pediu a Marina Miglio que citasse filmes, livros ou profissionais que têm um trabalho que, na opinião dela, valem ser vistos/lidos ou acompanhados, por se alinharem à luta antimanicomial e, tal qual, trazerem, no bojo, pontuações/informações importantes, sérias, confiáveis. Veja, a seguir, as recomendações dela
“Nise: O coração da loucura”
O filme de Roberto Berliner, lançado em 2016, conta a história da doutora Nise da Silveira (1905 – 1999), figura emblemática da Luta Antimanicomial no Brasil. “Me apego muito à Nise, porque ela trouxe essa discussão da arte como um dos meios de tratamento para pacientes com transtornos mentais. Na minha opinião, esse filme da vida dela é genial”. A produção traz Glória Pires como Nise da Silveira (abaixo, frame).
“Curtos e Surtos”
Para Marina, o livro “Curtos e Surtos”, de Mari Tibo, retrata perfeitamente como funciona a mente bipolar. “Até na maneira como ela escreve, tudo fica muito bem entendido. Ela discorre sobre a própria história e, mesmo assim, vale a pena para entender um pouco como o outro funciona”.
“Mania de liberdade”
Com o sub-título “Nise da Silveira e a humanização da saúde mental no Brasil”, o livro, de autoria de Felipe Magaldi, também fala sobre Nise da Silveira.
Psicotrópica
Aqui, temos uma marca de roupas cujas estampas, frisa Marina Miglio, são feitas por pessoas usuárias da rede de saúde mental.
Surto Criativo
Marina Miglio também destaca o perfil do Instagram “@surto.criativo”, que fala muito sobre a Luta Antimanicomial. A página é administrada por Raiana Pires, “que é a dona da marca de roupas”.
Raphael Sales
Ela também recomendo o perfil do cantor Raphael Sales, “@raphasalescantautor”. “Ele trabalha em um centro de convivência e está sempre postando os vídeos do trabalho artístico dele com as pessoas por lá. É muito interessante para as pessoas deixarem de lado os estigmas sobre os centros de convivência, é muito bonito de ver!”
Movimento Nacional da Luta Antimanicomial
A artista também cita o perfil no Instagram do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. “Lá, tem muita informação importante”, afiança.