Em “Marcello Mio”, de Christophe Honoré, Chiara Mastroianni, filha do icônico ator, adota as vestes do pai e reivindica ser chamada pelo nome dele
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Em meio a vários filmes que se filiam a fórmulas cujos resultados já são suficientemente comprovados, uma produção franco-italiana em cartaz na cidade se sobressai pelo ineditismo do roteiro: “Marcello Mio”, de Christophe Honoré. No longa, Chiara Mastroianni, filha de Marcello Mastroianni, decide, a partir de dado momento da história, incorporar o mundialmente famoso pai, falecido em 1996. Assim, passa não só a se caracterizar como homem (com direito ao uso de uma touca para esconder as madeixas longas e de uma peruca), como, no que tange ao vestuário, de modo similar a alguns personagens interpretados pelo icônico ator. Da mesma forma, reivindica ser chamada pelo nome dele, para estupefação do seu círculo (amigos, ex e a mãe).
Um elemento mais inusual ainda no filme é que, embora a narrativa seja ficcional, a produção reúne, no elenco, pessoas reais, que de fato formam o círculo do entorno de Chiara Mastroianni, hoje com 52 anos. E com seus verdadeiros nomes de batismo. Assim, a mãe de Chiara, na tela, é a mãe biológica da atriz, Catherine Deneuve. Deste modo, ela interpreta a si própria, só que numa trama ficcional. Pode parecer confuso, mas é isso mesmo. Do mesmo modo, o ator Fabrice Luchini interpreta a si mesmo, e dois ex-parceiros de Chiara, Benjamin Biolay (com quem tem uma filha, Anna) e Melvil Poupaud, seu namorado da juventude.
Chiara, como se sabe, é atriz, já contracenou com a mãe em outros filmes – inclusive, com as duas interpretando mãe e filha, como “3 Corações”, de Benoit Jacquot, ou “A Última Loucura de Claire Darling”, de Julie Bertuccelli, exibido no Festival Varilux.
À la Dolce Vita
Logo no início de “Marcello Mio”, Chiara aparece nas imediações da Fontana di Trevi, meio atordoada, encarnando, com direito a peruca loura, a sueca Anita Ekberg na clássica cena de “La Dolce Vita”. Neste momento, não está muito claro a que se destina tal filmagem. Na sequência, ela comparece a um teste de seleção para um filme no qual vai contracenar com Fabrice Luchini. No casting, após a cena, a diretora Nicole Garcia diz a Chiara que esperava uma atuação “mais Mastroianni e menos Deneuve”. Embora Luchini tente contornar a situação constrangedora, é como se uma chave tivesse se virado na cabeça de Chiara. A partir daí, ela se apropria de um terno do guarda-roupa de Biolay e passa a se transmutar no pai. Aliás, também começa a se comunicar em italiano.
As reações não tardam a emergir. No momento em que Chiara adentra o restaurante que habitualmente frequenta, por exemplo, o proprietário, um tanto quanto assustado com o que está vendo, liga de imediato para Deneuve. Não tarda e a atriz vai ao encontro da filha, no afã de entender se ela está concorrendo a algum papel em particular que exija tal caracterização. No entanto, longe de retroceder, Chiara avança, e, a partir deste ponto, várias citações à vida e à filmografia de Marcello Mastroianni aparecem na obra, como a presença de um cocker spaniel ou a cena com o soldado inglês, referência a “Noites Brancas”. Além da referência inicial a “La Dolce Vita”, “Marcello Mio” volta ao filme de Federico Fellini no momento em que Marcello/Chiara resgata um filhote de gato branco, como o do clássico italiano de 1960.
Homenagens
Embora transite pelo humor, “Marcello Mio” não é uma comédia. Na melhor das hipóteses, pode ser identificada como uma comédia dramática, que, com um jeito muito particular, também visa render uma homenagem ao ator cujos 100 anos de nascimento são lembrados este ano. Mas o caldeirão que compõe o filme de Honoré se destaca, sobretudo, pelo caráter de homenagem, e não só a Marcello Mastroianni, mas também a Fellini e ao próprio cinema italiano. Inclusive, por trazer, em seu elenco de pessoas reais, Stefania Sandrelli, um ícone da sétima arte naquele país. Aos 78 anos, Sandrelli atuou com Mastroianni em “Divórcio à Italiana”, de 1961. Isso mesmo! Ela tinha 15 anos à época.
A produção também traz algumas referências ao momento político atual da Itália, ao citar a primeira-ministra Giorgia Meloni. No âmbito cultural, há uma crítica clara à televisão italiana no momento em que Marcello/Chiara é convidada a participar de um programa de gosto duvidoso, no qual se perfila junto a outros supostos sósias de Mastroianni.
Al di Lá
Mas, al di là de tudo isso, há, também, em “Marcello Mio”, um debate sobre o peso de ser filha de pais muito famosos – e as inevitáveis comparações e cobranças advindas deste acontecimento. Não são poucos, os filhos de grandes ícones do cinema e da música que passam a vida submetidos a tais comparações – poderíamos citar, por exemplo, Charlotte Gainsbourg, filha de Serge Gainsbourg e Jane Birkin. Ou Isabella Rosselini, filha de Roberto Rosselini e Ingrid Bergman. Aliás, Charlotte e Chiara interpretaram irmãs, filhas de Deneuve, em “3 Corações”.
No caso de Chiara, a semelhança física com o pai certamente corrobora para tais comparações. No filme, a partir de determinados enquadramentos, angulações e luzes, o espectador poderia de fato acreditar estar vendo Mastroianni. Mas, claro, apesar dos traços do rosto, Chiara não tem a compleição física do pai, mais corpulento, de ombros bem mais largos. De todo modo, incluir esta abordagem neste filme-homenagem é pertinente e faz pensar sobre um fardo que não deve ser fácil carregar.
Qualidades
Algumas críticas ao filme apontaram para uma duração desnecessária. Talvez. Mas, de todo modo, fãs de cinema italiano e/ou francês, admiradores destes dois ícones (Deneuve e Mastroianni) e de Chiara (bela e talentosa por si só, independentemente de quem sejam os genitores), bem como fãs de Biolay (também cantor) certamente vão se deliciar. Talvez o público brasileiro descubra, por meio de “Marcello Mio”, uma faceta pouco conhecida de Chiara, a de cantora. Talvez se compraza tentando descortinar referências ou se divirta no momento em que toca “Words”, um sucesso do início dos anos 1980 cantor franco-tunisiano F. R. David.
Também passa a conhecer mais sobre o diretor, cujo filme mais recente, “Inverno em Paris”, passou recentemente na cidade. E como não aplaudir o sempre ótimo Fabrice Luchini? Enfim, são muitas qualidades. E, convenhamos, nem sempre um filme reúne tantas.