Curadoria de informação sobre artes e espetáculos, por Carolina Braga

Tudo que coube numa VHS: experiência transmídia com Magiluth

Experimento online do grupo de teatro de Pernambuco é uma das ações mais interessantes promovidas no teatro brasileiro durante a pandemia

Gostou? Compartilhe!

Magiluth é um grupo teatral de Recife, Pernambuco. Desde 2004, tem um consistente trabalho de pesquisa. Ao longo de 15 anos de existência, seus integrantes sempre estiveram atentos a realizar um teatro independente, permeado por questões urgentes de seu tempo.

A companhia surgiu no curso de licenciatura em Artes Cênicas da UFPE, a Universidade Federal de Pernambuco. Com foco em experimentação e pesquisa, em 2020, em meio à pandemia, os artistas se lançaram em dois experimentos cênicos, concebidos, especialmente, para esse momento de isolamento social. São eles, “Tudo que coube numa VHS” (indicado ao Prêmio APCA na categoria Teatro Digital) e “Todas as histórias possíveis”.

Ao longo do mês de julho, Tudo que coube numa VHS com o Grupo Magiluth será apresentado dentro da programação teatral do Sesc Taubaté. Os ingressos são gratuitos. Confira aqui!

Grupo Magiluth. Foto: Pedro Escobar
Grupo Magiluth. Foto: Pedro Escobar

Encontro com o diferente

Aqui, discorro, especialmente, sobre o experimento “Tudo que coube em uma VHS”. Todo o contexto do experimento se dá em meio digital. Soube, por meio de amigos, que o Magiluth estava tentando uma coisa diferente do teatro filmado em plano sequência.

Afinal, o teatro é, essencialmente, ao vivo. Movimentos, luz, sensações. Há um ritual a ser cumprido, da compra do ingresso à chegada ao teatro, do encontro no foyer à espera do terceiro sinal na plateia. Silêncio absoluto na abertura das cortinas. Espaço escuro, atenções e olhares a mirar a cena. Jogo de luzes, trilha sonora, figurino. O conforto ou desconforto da cadeira, o cheiro, a temperatura. Tudo é experiência. A reação da pessoa ao lado, a reação da plateia, a catarse coletiva, sua reação etc. etc. etc.

Está preparada?

“Tudo que coube em uma VHS”, experiência online e individual – repito, individual! –, começa com um telefonema. Na hora marcada, via direct, no Instagram, recebemos uma ligação via WhatsApp, e uma voz, desconhecida, fala: “Olá, Clarice. Você vai participar, agora, do experimento cênico do Grupo Magiluth. Está preparada?” – Sim, estou. “Coloca seus fones de ouvido, a experiência vai ser mais legal assim”.

Um texto poético e despretensioso começa a ser falado, praticamente junto ao cumprimento daquela pessoa que eu ouvia, pela primeira vez, em meu telefone. Ele diz algo do tipo: “Tudo pode parecer ficção, ou não.” Cai a ligação. Sensação estranha aquela, de ficar esperando a continuidade da trama, sem saber de onde e como virá.

Quase um minuto depois, chega uma mensagem. Via WhatsApp. Agora, já é história. Uma mensagem íntima. Há dúvida se retorno ou não. Temos, sempre, que responder a esses estímulos, me pergunto. E é nessa hora que você decide se irá ou não participar, de fato, do experimento. Decido responder. Recebo uma resposta de volta. Estávamos ali, a quilômetros de distância, construindo uma história. Se ficção ou não, depende de sua entrega. Afinal, estando ali, inevitavelmente, você se torna parte.

Multimídia

Mensagens de texto, link no YouTube, e-mail, música no Spotify, mensagens de áudio. Print de telas, para contar segredos. Tal qual fazemos contidamente, usando as várias mídias ao nosso alcance, para nos comunicar. Tudo pelo celular. Assim, vamos entrelaçando histórias.

Agora, neste momento, a transformação pandêmica nos trouxe – não que o fato seja inédito, mas a pandemia da Covid-19, inegavelmente, agilizou os processos digitais para as artes e outros segmentos – a possibilidade de fruir o teatro na tela do computador, da do smartphone ou da TV.

E se parássemos para interpretar as histórias que contamos em nossas conversas cotidianas, por essas plataformas? O que saberíamos de nós? Os algoritmos não só sabem, como usam essas histórias, interpretadas por meio de números infinitos. “Os computadores digitais são máquinas literárias”, já disse Ted Nelson, guru do hipertexto.

Plataformas teatrais

As novas tecnologias e seus aparelhos nos impõem, cada dia mais, uma nova rotina. É preciso esforço para sair dos hábitos impostos pelas telas que norteiam nosso cotidiano. Naturalmente, agora, alimentamos esses hábitos. De tal forma que o contrário é estranho e, na maioria das vezes, faz falta.

Muito se discute para onde esses hábitos nos levarão. A nós, humanos, e às máquinas que nos destinam. É necessário falar o que vamos fazer, ou melhor, o que estamos fazendo com isso. Testar os limites, trazendo-os para nosso lado. Não que seja a hora de se render. Essa hora nunca chega para as almas artistas e desassossegadas.

Reflito se não é chegada a hora de explorarmos as redes, para além de uma demanda imposta, como se dá durante a pandemia. A revolução dos dados está aqui e agora. Há revolução: da forma de fazer, da forma de consumir, da forma de comunicar e de fruir – por que não? – a arte.

Grupo Magiluth. Foto: Pedro Escobar
Grupo Magiluth. Foto: Pedro Escobar

Estímulos

É necessário nos estimularmos, para rompermos as barreiras digitais da arte da representação? O teatro é feito, essencialmente, de pessoas. E os hábitos dessas pessoas, as que produzem e as que consomem, estão em constante mudança. Os pontos de referência, agora, também podem ser outros. Pode ser da tela do celular. Pode ser da voz, tal qual uma rádio novela.

Só que feito por um aparelho que cabe na palma da mão, e que, ao final da gravação, com dois ou três cliques, também pode distribuir aquele conteúdo. A difusão ganhou contornos, nem tão bem definidos assim, e, por meio deste mesmo artefato, pode-se delinear o público preferencial para aquele produto.  

O teatro, uma das expressões artísticas mais antigas da humanidade, tem suas peculiaridades em relação a outras formas de representação. O “fazer” desta arte sempre envolveu, além da criação dramatúrgica, outras tantas operações artísticas, que se formam em torno de uma plateia in loco.

O ator, o palco, a presença. Outras linguagens e suportes surgiram depois. O cinema e a televisão, por exemplo, deram, à arte dramática, novas técnicas de espetacularização, e foram fundamentais à renovação da linguagem teatral. 

Máquina de afetos

Agora, também lidamos com outras linguagens e suportes. A arte teatral tem, sobretudo, a capacidade de gerar afetos. E o que nos afeta hoje? As transmissões realizadas no período pandêmico, raras exceções, transportaram para a(s) tela(s) o teatro filmado. Câmera estática, artistas a postos, gravando! Uma forma difícil e complexa de fruir o teatro.

O texto, a movimentação, tudo que envolve as artes cênicas fica retido e delimitado no ecrã plano e estático. Essas características não fazem parte do teatro que tem dimensões ao vivo. Transpor sensações outras nesta arte – a “arte do encontro” – é tarefa árdua. Como comunicar e fazer sentir de verdade? Eis a grande pergunta que, em um experimento, o Grupo recifense respondeu: é possível.

Durante a pandemia, fui telespectadora de algumas ações. E “Tudo que coube em uma VHS”, do Grupo Magiluth foi, de longe, a que mais me afetou. Arrepiei, fechei os olhos, prestei atenção na letra, na voz, na foto, no texto. Fiquei ansiosa pelo próximo contato, sem saber de onde ele viria. Demandou tempo, atenção, dedicação, presença. Estar online e presente!, sem, de fato, estar presente. Uma questão contemporânea.

Uma história construída de forma contínua e não linear. Ela se dá por meio de um aparelho eletrônico, com subjetividade, construção de mundos, narrativas assimiladas que podem gerar outros conteúdos. A cultura transmídia, de Jenkins, transpassada ao teatro. Será?

Para além da experiência com Magiluth

Sobre esta última, sublinho: além da experiência, fonte de inovação e busca incessante das estratégias de marketing contemporâneas, ganhei souvenirs do Grupo Magiluth: um vídeo lindo, para ver e rever quando eu quiser (salvei nos favoritos do computador), uma música, para ouvir de olho fechado, alguns áudios de WhatsApp, para relembrar o momento, e um e-mail com texto lindo, para repensar a vida e ganhar fôlego: “Não vamos morrer… esse é o nosso mundo, não precisamos morrer! Podemos criar uma outra realidade. Um outro mundo, uma outra língua. Só fica aqui… vamos colocar esse plano em prática. Vamos criar um mundo”.

Sim, podemos inventar outras realidades, para criar, apresentar e representar. Todas as redes sociais que aqui citei transformam nossas ações e mensagens, de trabalho, deslocamento, cuidado, amor ou ódio, em dados sobre nós. Dados que serão usados das formas mais distintas e complexas, para que a gente possa consumir serviços, produtos ou… arte.

E se nos perguntássemos: o que esses infindáveis cálculos numéricos fazem quando tudo é ficção? Em que se transforma a dramaturgia nos múltiplos aplicativos que, despretensiosamente, usamos no cotidiano? Afinal, não é justamente o cotidiano que nos inspira, sendo base para as construções dramatúrgicas?

As respostas, acredito, virão enquanto fazemos, enquanto testamos e experimentamos. Agora, dentro do contexto que está dado, de constante renovação tecnológica, que gera novas formas de comportamento, o que nos resta é perguntar e, mesmo errando, tentar responder. Vamos!


Clarice Castanheira é sócia fundadora do Microteatro La Movida. Formada em publicidade pela Puc Minas e antes de completar os cursos de letras e jornalismo, foi definitivamente fisgada pela produção cultural, área que atua desde 2001. Trabalhou em grandes companhias, festivais e espaços culturais da cidade e atualmente se dedica à gestão do Microteatro e integra a equipe de programação do Sesc Palladium, em Belo Horizonte. Participou do 1º Laboratório Culturadoria de Jornalismo e Crítica Cultural.

Gostou? Compartilhe!

[ COMENTÁRIOS ]

[ NEWSLETTER ]

Fique por dentro de tudo que acontece no cinema, teatro, tv, música e streaming!

[ RECOMENDADOS ]