Curadoria de informação sobre artes e espetáculos, por Carolina Braga

“Eu Também Não Gozei” estreia na Mostra Aurora, em Tiradentes

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Filme de Ana Carolina Marinho debuta na Mostra Aurora do Festival de Cinema de Tiradentes , abordando os desafios de uma mãe solo

Patrícia Cassese | Editora Assistente

Escancarar a negligência e o abandono paterno, mostrando o ciclo de violência que costuma envolver as mães solo. Como esse firme – e pertinente – propósito, o filme “Eu Também Não Gozei”, direção de Ana Carolina Marinho, terá estreia mundial no Festival de Tiradentes. Precisamente, na Mostra Aurora, seção do evento dedicada a filmes feitos por realizadores com até três longas-metragens na carreira e que se caracteriza por trabalhos estéticos e narrativos singulares. Aliás, este ano, a Mostra Aurora exibe sete longas, que vêm de São Paulo, Bahia e Pernambuco.

Letícia Bassit, cuja história real embasou o documentário que será exibido em Tiradentes (Frame)
Letícia Bassit, cuja história real embasou o documentário que será exibido em Tiradentes (Frame)

Um dos representantes de São Paulo, “Eu Também Não Gozei” (Arenga Filmes) se debruça sobre a história pessoal de Letícia Bassit. Atriz-performer, escritora-dramaturga, diretora e arte-educadora, Letícia viveu uma situação que de forma alguma é singular. Ao procurar o rapaz com quem teve o relacionamento sexual por meio do qual engravidou, ouviu, dele, que o pai da criança não poderia ser ele – afinal, “não tinha gozado”, argumentou.

Coragem

Em entrevistas concedidas à imprensa, no bojo do livro “Mãe – Eu Também Não Gozei”, Letícia assume o erro de ter tido uma relação sem camisinha. “Sei que a responsabilidade de engravidar é minha, mas não 100%. Só 50%. E, por ser homem, acha que pode fugir da responsabilidade”, disse ela, ao UOL. Fato é que Letícia acabou tendo o filho sozinha – o pai da criança a bloqueou nas redes e também no celular. Assim, ela nunca mais o viu. Pouco depois de voltar da licença-maternidade, Letícia também perdeu o emprego. Mas, mesmo não tendo tido uma gravidez planejada e passado por mil e uma dificuldades, ela contou, ao UOL, que se submeter a um aborto não era uma opção. E declarou que o filho é a coisa mais importante que já lhe aconteceu.

Cena do filme-documentário "Eu Também Não Gozei", de Ana Carolina Marinho (Frame)
Cena do filme-documentário “Eu Também Não Gozei”, de Ana Carolina Marinho (Frame/Arenga Filmes)

Assim que a diretora Ana Carolina Marinho soube da história de Letícia, a quem já conhecia, de pronto lhe veio à mente a ideia de um filme. “A coragem e a honestidade dela me inspiraram”. Na verdade, ao Culturadoria, Ana contou que o projeto do filme atuou como um disparador para o guarda-chuva que se transformou o projeto Eu Também Não Gozei. Assim, vieram outros desdobramentos, caso do livro “Mãe – ou Eu Também não Gozei” (Claraboia Editora) e de uma peça. Mas vem mais por aí. Confira, a seguir, outros trechos da conversa.

O embrião

O que te impactou na história da Letícia a ponto de querer levá-la às telas?

Na verdade, conheci a Letícia na época em que estudávamos na SP Escola de Teatro, em 2011/2012. Na época, fizemos um experimento cênico em que eu atuei e ela dirigiu. Após a escola, perdi um pouco o contato com ela, mas o carinho e admiração permaneceram. No fim de 2017, uma amiga em comum me comentou sobre a gravidez de Letícia e aquela história passou a me intrigar. Na hora, eu pensei: “Essa história dá um filme!’ A coragem e honestidade de Letícia me inspiravam. Aquela história suscitava angústias, medos e provocações que me remexiam.

Assim, convidei a Letícia para uma conversa e propus realizarmos um documentário. Com o seu aceite, convidei outras parceiras para estarem junto (Amanda Bortolo, Anna Zêpa e Luz Bárbara). Durante a feitura do filme, Letícia iniciou o processo de escrita do livro e depois da peça. Ela já vinha de processos de investigação sobre a autoficção. Nesse sentido, o filme foi um disparador para esse guarda-chuva que se transformou o projeto Eu Também Não Gozei, que tem desdobramentos com o filme, o livro e a peça.

Pontapé

Então, o pontapé inicial desse guarda-chuva foi o filme

Isso. Assim que eu soube das circunstâncias da gravidez de Letícia, imediatamente a convidei para fazer o filme. Ela estava com três meses de gestação. Diante da urgência em filmar e acompanhar a história dela, era impossível esperar a situação ideal para realizar o filme. Não havia tempo para esperar a situação ideal, porque isso demandaria um tempo que não tínhamos. Assim, iniciamos as filmagens de forma independente, sem nenhum recurso. Mas nossa pressa não era para terminar o filme, afinal não fazíamos ideia de quando pararíamos de filmar. Seguimos por dois anos acompanhando o dia a dia da personagem, as idas ao hospital, o parto, o puerpério, a realização dos DNAs… (abaixo, foto da Arenga Filmes)

Première

O filme já teve alguma exibição em première ou a Mostra de Tiradentes marca efetivamente a estreia?

Esta é a estreia mundial do filme. Antes, participamos apenas de laboratórios (de desenvolvimento e de distribuição de impacto).

Processo

Como o filme é estruturado?

O filme segue os acontecimentos cronológicos da vida de Letícia, acompanhando os exames de ultrassom, a gravidez solitária, seu trabalho como atriz no teatro, o parto, o puerpério, os exames de DNA, as tentativas de contato com os supostos genitores, a busca pela orientação jurídica, etc. Meu desejo era que a narrativa do filme fosse construída conforme a experiência que estávamos vivendo. Desse modo, que o espectador conhecesse a história pelo ponto de vista da personagem, vivendo um dia de cada vez, vivenciando os anseios, expectativas, frustrações e reflexões. A história de Letícia sempre foi o fio condutor da trama.

 Ana Carolina Marinho, diretora do filme: "Torço para que o público se vincule ao filme de alguma maneira" (Ethel Braga/Divulgação)
Ana Carolina Marinho, diretora do filme: “Torço para que o público se vincule ao filme de alguma maneira” (Ethel Braga/Divulgação)

Porém, durante o puerpério – que não é nada fácil – Letícia pediu muitas vezes para suspender as filmagens. Assim, passamos algumas semanas sem gravar. Desse modo, algumas passagens importantes para a construção do arco narrativo aconteceram nestes períodos de afastamento e foi preciso reconstruir para seguirmos com a minha proposta de montar o filme tal como a história estava acontecendo. Foi assim que a autoficção virou dispositivo. Muitas passagens no filme foram reconstruídas – e outras, inclusive, foram inventadas.

Provocar

Que reflexões o documentário pretende lançar para o espectador?

Torço para que o público se vincule ao filme de alguma maneira, se inquiete, se indigne. Que seja provocado a pensar diante desta situação complexa sobre as contradições que envolvem a liberdade sexual entre os gêneros. (Tal qual) a naturalização da violência contra as mulheres e crianças. E, quem sabe, se torne um aliado na discussão sobre o abandono paterno. Acompanhando a história de Letícia, nosso desejo era que, com o filme, as mulheres que estejam passando por situação semelhante não se sintam sós. E, do mesmo modo, que os homens se perguntem em que medida são cúmplices desse ciclo de violência que atormenta muitas mães e filhos.

Gostaria que todos se perguntassem: ‘O que eu faria na situação de Letícia?’ ‘O que eu faria na situação de um suposto genitor?’ A história de Letícia é uma lupa em uma situação que pode acontecer com muitos de nós, mas que, por vergonha e medo, quase nunca é compartilhada. Já recebemos muitos relatos de mulheres e homens envolvidos em situações semelhantes. Este filme é um disparador de incômodos. Ou seja, toca em temas tabus como sexualidade e parentalidade. Assim, desejo que o público se sinta instigado a refletir e a agir diante destes desconfortos.

Espaços de diálogo

Quais são os planos para o filme após a Mostra de Tiradentes? No material alusivo ao documentário é citado que o projeto inclui ações planejadas…

Durante a realização do filme, fomos mergulhando nos dados sobre o abandono paterno no Brasil e nos espantando com os altos índices, com a naturalização dessa violência contra as mulheres e crianças. São muitos relatos de mães em situações muito parecidas. Mulheres que, por medo, culpa ou vergonha, se silenciam. Aos poucos, fomos desejando que o filme não se encerrasse nas salas de cinema, mas pudesse encontrar caminhos alternativos para criar esses espaços de diálogo com mães, pais e com o público em geral, para discutir parentalidades possíveis.

A diretora Ana Carolina Marinho (Mylena Sousa/Divulgação)
A diretora Ana Carolina Marinho (Mylena Sousa/Divulgação)

Em 2022, passamos meses elaborando o plano de distribuição de impacto do filme dentro do Good Pitch Brasil. Desse modo, refletindo e construindo ações sociais que buscam, por exemplo, criar redes de apoio entre mães solo. Tal qual, estimular campanhas de reconhecimento de paternidade, fornecer apoio jurídico às mães solo, desnaturalizar o abandono paterno, provocar a mudança da legislação Brasileira sobre o tema e afirmar os direitos das mulheres à autonomia sexual e reprodutiva. Mas, para a realização deste plano de ações, precisamos de apoio. Assim, estamos na torcida para conseguir algum edital de distribuição que nos permita realizar esse plano de distribuição.

Mostra Aurora

Além de “Eu Também Não Gozei”, os filmes na Mostra Aurora 2024 são “O Tubérculo” (SP), de Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune; “Maçãs no Escuro” (SP), de Tiago A. Neves; “Sofia Foi” (SP), de Pedro Geraldo; “Not Dead” (BA), de Isaac Donato; “Lista de Desejos para Superagüi” (PR), de Pedro Giongo; e “EROS” (PE), de Rachel Daisy Ellis. Todos eles vão ser avaliados pelo Júri Oficial e concorrem ao Troféu Barroco e a prêmios de parceiros da Mostra.

Confira, abaixo, o teaser

Serviço

“Eu Também Não Gozei”

Mostra Aurora do Festival de Tiradentes

Lançamento do documentário
22 de janeiro de 2024, às 20 horas
Cine-Tenda da mostra de Cinema de Tiradentes

Debate sobre o filme
23 de janeiro, às 11h15
Cine-Teatro da Mostra de Cinema de Tiradentes


Programação gratuita

Toda a programação é gratuita. Maiores informações www.mostratiradentes.com.br

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