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Agenda Cultural

“João-de-Barros” e a noção de uma infância poética

Cena do espetáculo "João-de-Barros", que está percorrendo os CRAs (Kawane Gomes/Divulgação)

Cena do espetáculo "João-de-Barros", que está percorrendo os CRAs (Kawane Gomes/Divulgação)

Artista e dramaturgo Charles Valadares percorre Centros de Referências da Assistência Social (CRAS) com o espetáculo “João-de-Barros”

Patrícia Cassese | Editora Assistente

Foi no ano de 2013 que o artista e dramaturgo Charles Valadares travou um contato mais fecundo com a obra poética de Manoel de Barros (1916 – 2014). “À época, estava me aproximando do fim da graduação em Teatro, na UFMG, e li uma entrevista que o poeta concedeu à revista ‘Caros Amigos’, em 2008”. O texto, vale situar, havia sido compartilhado por uma professora. O encantamento foi de tal monta que, de pronto, Charles partiu em busca de outros escritos do mato-grossense. E à medida em que devorava os escritos, percebeu que se reconhecia naquelas palavras. “Foi como se a minha infância encontrasse a do poeta”, traduz.

Um trecho da mencionada entrevista acabou, tempos depois, impulsionando a criação de “João-de-Barros”, espetáculo com o qual Charles circula agora pelos Centros de Referências da Assistência Social (CRAS). Ao todo, 13 unidades receberão o projeto até o dia 19 de julho, em sessões abertas ao público (acesso gratuito, por ordem de chegada). O trecho em questão, revela Charles Valadares, é: “A gente nasce, cresce, envelhece e morre. Pra não morrer é só amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste!”.

Amarrando o tempo

A partir dessas palavras, Charles começou a elocubrar: como seria amarrar o tempo? É possível? Quais caminhos para fazer isso? Afinal, o que queria dizer o poeta ao elaborar algo tão enigmático e poético? “Assim, comecei a imaginar que um dos caminhos de ‘amarrar o tempo’ seria fazendo teatro. Quando estamos apreciando uma obra teatral, penso que há uma suspensão do tempo. Espectador e ator, por meio do pacto ficcional, amarram o tempo no poste para que a experiência cênica aconteça”.

De acordo com o dramaturgo, durante um acontecimento cênico, ao espectador é permitido viajar no tempo. “Ou seja, estamos abertos a outra forma de vida que pode se manifestar por meio de personagens ficcionais, memórias pessoais, dados biográficos e situações reais e inventadas”, analisa. Assim, como dito, tecia-se a trama de “João-de-Barros”, que, no material de divulgação da iniciativa, é apresentada como “a fábula de um menino que inventou o mar no quintal da própria casa”. Daí, prossegue o texto, “navegou por ele e descobriu uma terra governada por um rei opressor”. No entanto, a partir da viagem imaginativa, o menino muda o curso da história.

Um rei opressor

No entanto, Charles ressalta que não há, na dramaturgia de “João-de-Barros”, fragmentos da poesia de Manoel de Barros. “Ou seja, não faço uma adaptação ou citação direta aos escritos dele”. Na trama, o tal rei opressor, em nome da “ordem e progresso”, quer tirar os direitos conquistados pelo povo. Isso, a partir de dois decretos: um que proíbe as famílias de terem mais de um filho e, tal qual, outro que proíbe o compartilhamento dos quintais. Assim, instituindo a criação de muros.

Brinquedos-sucata

De acordo com Charles, é uma camada política que dialoga diretamente com algumas questões vividas nos últimos anos no país. Questões essas, que, lembra, infelizmente se propagam também por outras partes do mundo, “a partir do avanço de pensamentos autoritários”. Não só. De acordo com ele, também há um diálogo da obra com outras questões pertinentes ao nosso tempo. Isso, ao trazer para a cena, por exemplo, atividades com os chamados “brinquedos-sucata”. Aliás, são objetos manipulados pelo artista pelo durante todo o espetáculo.

No processo de criação de tais artefatos, ele usa materiais considerados simples, cotidianos. Itens geralmente descartados como “inúteis”. Caso de retalhos de tecidos, potinhos de iogurte de variados formatos, tampinhas de garrafa, caixas e rolos de papelão, bem como latinhas, entre outros. Na verdade, Charles diz que conheceu as inúmeras possibilidades dos brinquedos-sucata durante a graduação. Mais precisamente, a partir do contato com o trabalho de Marina Marcondes Machado, estudiosa do teatro para as infâncias e das relações do teatro com a educação.

Serve para a poesia

Particularmente, do livro “O Brinquedo-sucata e a Criança – A importância do brincar”. Marina, vale dizer, o orientou na graduação, mestrado e doutorado. “Como Marina, também compartilho planos e desejos de um mundo melhor, principalmente para as crianças”, estabelece. Recorrendo a Manoel de Barros, Charles lembra que o poeta escreveu que “tudo aquilo que nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para a poesia”.

Desse modo, os brinquedos-sucata são construídos a partir de materiais que, em vez de serem descartados como lixo, viram a base de experiências de criação e brincadeiras que envolvem crianças e adultos. “No caso do ‘João-de-Barros’, os materiais que citei ganham, no palco, outras vidas, a partir do uso criativo e, do mesmo modo, da nossa capacidade de imaginar”, exalta. Aliás, até mesmo eletrônicos estragados podem se transmutar em brinquedos-sucata, como, por exemplo, um teclado de computador.

Ação política

Ainda sobre os brinquedos-sucata, Charles pondera que, além de serem um convite ao faz de conta, eles também carregam uma ação política em seu uso, dado que seriam um contraponto “às grandes indústrias de brinquedos, que faturam bilhões estimulando o consumo, manipulando desejos e até afetos”. “Em tempos de telas e vidas virtuais, o ‘João-de-Barros’ está na contramão disso. É um convite ao uso criativo de objetos, ao brincar com materialidades simples, mas que podem ser ricas em sentidos e significados a partir do ato de imaginar”.

Simples, porém, profundo

E não, não acabou o rol de predicados. O dramaturgo também cita que a escolha do brinquedo-sucata como o principal recurso da composição cênica reflete o modo singelo, a simplicidade e a delicadeza da poesia manoelina. “Manoel de Barros foi um poeta que escreveu sobre o simples, mas de uma maneira muito profunda”, comenta. O cenário do espetáculo também dialoga com a simplicidade dos objetos manuseados pelo artista. Assim, o figurino é composto por peças despojadas, bem como Charles dispensa o uso de maquiagem para esconder a barba ou a “adultícia do ator”.

Infância “dos pés descalços”

Para além da experiência específica com “João-de-Barros”, o Culturadoria pediu a Charles Valadares para falar mais sobre a admiração dele à obra de Manoel de Barros. “Veja, muitos poemas de Manoel remetem à memória de infância dele e de seus filhos. Quando lia aqueles escritos, me reconhecia em suas palavras”. Ele conta que viveu o que chama de sua “experiência infantil entre 1990 e 2000”, em Raposos. Embora localizada na região metropolitana de Belo Horizonte, Charles entende que a cidade carregava, à época, ares de interior.

“Assim, brinquei muito na rua, descalço, com muitos amigos, livre em quintais diversos. E com brinquedos que muitas vezes eram inventados por nós, a partir de materiais que seriam descartados como lixo. Tal qual, a partir de elementos da natureza (folhas, galhos, terra, água, entre outros)”. No cômputo geral, ele analisa que a poesia de Manoel de Barros conversa com uma infância inventiva. “Do brincar com materialidades diversas, e que eu gosto de chamar de ‘infância de pés descalços’”.

Memórias, afetos, estudos e experiências

Além das memórias de infância terem sido reavivadas e até ressignificadas a partir da poesia de mato-grossense, Charles Valadares acrescenta que também estava envolvido com estudos acerca da experiência teatral em diálogo com a infância. “Integrei dois projetos de extensão na universidade que tinham como foco práticas teatrais com crianças de 4 e 5 anos. Esses estudos foram o terreno do meu Trabalho de Conclusão de Curso na graduação em Licenciatura em Teatro”. E, assim, foi mergulhado no que nomina como “caldo de memórias da infância, experiências como professor de teatro para crianças e leituras de parte da obra poética de Manoel” que nasceu “João-de-Barros”. “Foi meu modo de elaborar, no campo cênico, esse entrecruzamento de memórias, afetos, estudos e experiências”.

Serviço

Espetáculo “João-de-Barros”

Circulação pelos CRAS

Próximas etapas. Granja de Freitas (13.6, às 14h), Vila Cemig (14.6, às 14h), Mantiqueira (20.6, às 14h), Havaí Ventosa (21.6, às 14h), Vila Maria (27.6, às 14h), Alto Vera Cruz (28.6, às 14h30), Confisco (4.7, às 13h30), Zilah Spósito (5.7, às 14h), Rita de Cássia (11.7, às 14h), Jardim Felicidade (12.7, às 14h), Vila Antena  (18.7, às 14h30) e Petrópolis (19.7, às 14h)

Gratuito 

Classificação: Livre . Duração: 45 minutos

Informações: (31) 99410-7068

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