Curadoria de informação sobre artes e espetáculos, por Carolina Braga

“Ainda Temos o Amanhã”, uma pérola em cartaz na cidade

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Dirigido e estrelado por Paola Cortellesi, o longa-metragem italiano trabalha temas que estão na ordem do dia, como a violência doméstica

Patrícia Cassese | Editora Assistente

Paola Cortellesi em cena de "Ainda Temos o Amanhã" (Claudio Iannone/Frame/Divulgação)
Paola Cortellesi em cena de "Ainda Temos o Amanhã" (Claudio Iannone/Frame/Divulgação)

Depois de passar, no ano passado, pelo Festival de Cinema Italiano, “Ainda Temos o Amanhã” (“C’è Ancora Domani”/Pandora Filmes) está em cartaz na capital mineira. Trata-se de uma pérola em P&B que, sim, merece demais ser conferida. A ação se centra no início dos anos 1950. Em um bairro pobre de Roma, Delia (Paola Cortellesi) tenta, como tantas mulheres mundo afora, dar conta das múltiplas tarefas a ela delegadas. Primeiramente, cuidar da casa, dos filhos (dois meninos ainda crianças e uma jovem, Marcella) e do sogro acamado e reclamão. Não bastasse, lida com um marido tosco, rude e violento e ainda trabalha fora. Só que Delia não tem um emprego regular, único, mas, sim, várias atividades, como assistência a idosos e a confecção de roupas íntimas.

Também trabalha numa oficina de conserto de guarda-chuvas e lava roupas de cama e mesa. Em tempo: além de assumir o papel de protagonista, Paola Cortellesi é também o nome por trás da empreitada, assinando a direção. Como atriz, ela constrói uma Delia absolutamente crível, mantendo laivos de doçura mesmo em meio a tantos dissabores diários. No caso das múltiplas pequenas fontes de renda, para citar um exemplo, logo no início do filme, vemos que, não bastasse todos os perrengues já citados, Delia ainda sofre o descompasso salarial até hoje vigente entre homens e mulheres.

Múltiplas tarefas

Assim, no caso da oficina de guarda-chuvas, ela é surpreendida ao saber que o novo funcionário, um rapaz que não sabe distinguir o que é um cabo do que seriam as hastes do objeto, já entrou ganhando um salário maior que o dela. Ou seja, apenas por ser homem. Aliás, não bastasse, Delia é incumbida de ensinar os meandros da lida com sombrinhas e guarda-chuvas ao rapaz. Já em meio às visitas regulares a idosos, onde aplica injeções e que tais, vive o impacto de vislumbrar, entre frestas de portas, a vida dos que estão longe de ter que fazer malabarismos para pagar as contas no final do mês.

Violência doméstica

As coisas já seriam difíceis – muito difíceis – se os problemas de Delia cessassem aí. Ocorre que, na vida íntima, ela ainda é vítima de uma violência doméstica descomunal. E, aqui, não estamos falando apenas da violência verbal, o hoje discutido gaslighting. Aliás, em função do ruído gerado pelas agressões físicas que Delia sofre, toda a vizinhança acaba sabendo o que se passa na casa da família. Marido de Delia, Ivano (Valerio Mastrandrea) é um homem tosco e machista, que, mesmo situado temporalmente ali, no início dos anos 1950, inacreditavelmente apresenta-se ainda reconhecível nos dias atuais. O ser irracional, estúpido, que objetifica a figura feminina segundo o foco do interesse dele no momento.

A personagem Delia (à esq.) corta um dobrado para dar conta dos mil afazeres, no filme (Frame)
A personagem Delia (à esq.) corta um dobrado para dar conta dos mil afazeres, no filme (Frame/Pandora Filmes)

Apesar dos hematomas constantes, frutos dos espancamentos, toda manhã Delia se levanta para tentar seguir a vida, motivada principalmente pela possibilidade de a filha ser, em breve, pedida em casamento por Giulio, o rapaz que namora. Embora filho de uma família cuja renda vem de negócios aparentemente escusos, ele é visto, por Delia, como um rapaz fino. Assim, o casamento da filha aparece como uma possibilidade de a garota romper o ciclo. Portanto, não repetir a história de Delia. Mesmo porque, a essa altura, o pai já obrigou a menina a interromper os estudos para ajudar nas despesas da casa.

Respiros

É no que tange à vida fora das quatro paredes do lar que Delia encontra respiros. Seja no convívio com a amiga, Marisa, com quem fuma escondido e dá algumas risadas, seja no flerte com Nino (Vinicio Marchioni), um antigo namorado, agora mecânico de uma oficina. Logo no início do filme, ela também estabelece, por conta do acaso, um outro convívio. Desse modo, com um jovem soldado – William (Yonv Joseph) – que integra as forças aliadas. O rapaz, claro, não tarda a perceber as equimoses nos braços da italiana.

Noivado

O primeiro grande acontecimento do filme situa-se no momento em que o namorado de Marcella finalmente marca o jantar que, na tradição da época, selaria o compromisso afetivo. Indiferente à evidente vergonha que invade Marcella diante do convite feito pela mãe para que o encontro entre as famílias aconteça na casa da família dela (ela teme uma reação diante do comportamento grosseiro do pai, do avô e dos irmãos, assim como da maneira como a mãe visualmente se apresenta, e mesmo com a própria moradia), Delia se esmera para fazer boa figura.

A atriz Romana Maggiora Vergano interpreta Marcella, no filme (Frame)
A atriz Romana Maggiora Vergano interpreta Marcella, no filme (Pandora Filmes)

Neste ponto, o espectador já pode imaginar que nem tudo sairá como o script. Mas é um pouco mais à frente ainda que Delia vai vivenciar o que acaba sendo um divisor de águas entre a resignação com o que a vida lhe reserva e a vontade de romper o círculo. Um momento no qual ela se dá conta de que precisa, efetivamente, dar um basta – e promover uma forte guinada na vida.

Escolhas

Além da opção pelo P&B, “Ainda Temos o Amanhã” ecoa escolhas que se revelam não só criativas, como, em determinados momentos, muito inovadoras. Caso da maneira como a primeira cena de violência doméstica é apresentada – não vamos comentar, aqui, para não correr o risco de estragar a surpresa do espectador. O uso de músicas atuais em um filme de época, por seu turno, não é propriamente uma novidade, mas resulta em um efeito bem interessante para a narrativa.

Um outro acerto é se valer do elemento riso em alguns momentos. Certo, o tema maior – a violência contra a mulher – não traz, em seu lastro, graça alguma, mas a atriz e diretora consegue ser otimamente sucedida ao inserir cenas que dão esse respiro ao espectador. Do mesmo modo, as pitadas de romantismo provocam candura em meio a tanta dureza. Mas o grande trunfo de Paola Cortellesi é o fator surpresa reservado para o grand finale. Difícil acreditar que alguém, no curso do filme, consiga prever o que está para acontecer nos minutos finais. Tal qual, é impossível que alguém consiga não se emocionar com o projeto que move Delia. Acreditem, é lindo demais! E a música escolhida só faz engrandecer o momento.

Posicionamento

Reiteramos que, no feixe de temas abarcados pelo filme, vários se sobressaem como ainda hoje urgentes, mesmo que a ação esteja localizada décadas atrás. Evidentemente, a violência doméstica ocupa a pole position, posto o número de casos que chegam à luz do conhecimento diariamente – no Brasil, basta lembrar o episódio recente envolvendo uma apresentadora de TV. Mas não só. “Ainda Temos o Amanhã” também fala sobre sororidade, empatia, discrepância de salários entre homens e mulheres e, lógico, sobre a importância de nos posicionarmos e tentar, mesmo que timidamente, mudar o cenário, ao menos para as gerações futuras.

Para ficar na retina

Cena do filme "Ainda Temos o Amanhã", de Paola Cortellesi (Frame do filme)
Cena do filme “Ainda Temos o Amanhã”, de Paola Cortellesi (Pandora Filmes/Divulgação)

Ao fim, Paola Cortellesi presenteia o público com um filme simplesmente maravilhoso, potente, único, particular. Impossível não se render a Delia, não admirá-la, não torcer para que ela consiga sair do círculo vicioso em que está metida. Do mesmo modo, impossível – ao menos para o público feminino, mas certamente para o masculino que já não adota mais antigos (e absurdos) padrões impostos por sociedades estruturalmente machistas ou para aqueles que se empenham em sair dessa barafunda – encerrar a sessão sem ser afetado. “Ainda Temos o Amanhã” é um filme para ficar na retina para sempre. Não por outro motivo, revolta, um pouco, saber que, no Brasil, certamente não fará a bilheteria meritória, por não se tratar de uma super produção hollywoodiana.

Confira, abaixo, o trailer

Serviço

“Ainda Temos o Amanhã”

Una Belas Artes – Às 16h10 e às 18h20, nesta terça-feira e na quarta, dias 9 e 10 de julho de 2024.

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