
A capa do livro "Revolucionárias: Joana d'Arc e Maria Quitéria", da mineira Isabelle Anchieta (Editora Planeta/Divulgação)
A jornalista e socióloga mineira Isabelle Anchieta conversa com o Culturadoria sobre seu mais recente livro, “Revolucionárias: Joana d’Arc e Maria Quitéria”
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Recentemente, a pesquisadora e jornalista mineira Isabelle Anchieta esteve na Bahia por um motivo dos mais procedentes. “Fiz questão de levar o trabalho até a comunidade rural onde (a militar baiana) Maria Quitéria (1792 – 1853) viveu, antiga São José dos Campos das Itapororocas”. O trabalho ao qual ela se refere resulta das intensas pesquisas às quais se lançou por meses e meses: o livro “Revolucionárias: Joana d’Arc e Maria Quitéria” (Editora Planeta). Nele, a autora lança o olhar perscrutador sobre as duas mulheres citadas no título. Mulheres que, apesar de terem vivido em épocas, continentes e realidades bem distintas, sobressaíram-se pela autodeterminação. “Ambas compartilhavam uma inusual vocação militar. E, contra todas as probabilidades de realizarem tal desejo, tornam-se heroínas nacionais”, diz a apresentação da obra.
O título chegou às livrarias no início de abril deste ano. Na citada e recente viagem à Bahia, Isabelle conversou com alunos da escola estadual local sobre Maria Quitéria. “Foi um momento muito significativo. Ao fim, uma aluna me abordou e disse que finalmente havia sanado uma dúvida sobre o direito humano à liberdade”. Após este primeiro ponto de parada, a escritora seguiu para Feira de Santana. Passou também por Cachoeira e foi terminar o percurso em Salvador. “Lá, recebi e dialoguei com leitores que me acompanham. Aliás, fiquei surpresa com isso, com o alcance do trabalho (que desenvolve), de estabelecer essas pontes”, diz ela, que há quatro anos lançou a trilogia “Imagens da Mulher no Ocidente Moderno” (Edusp).
Revolucionárias
Ao Culturadoria, Isabelle Anchieta conta que, em seus livros anteriores, tratou do poder latente do feminino na história do ocidente. Mas, ao mesmo tempo, nutria o interesse de compreender aquelas mulheres que não foram tão sutis. “Ou seja, mulheres que enfrentaram o sistema cultural de forma explícita. Frontal. Revolucionárias. Quis entender o estranho sucesso dessa empreitada, já que ela não é – e nem poderia ser – solitária e voluntariosa. Depende de apoios, de oportunidades e apostas de homens e mulheres em posição de poder, até mesmo da aceitação de uma significativa parcela de pessoas comuns”.
Assim, Isabelle buscou elaborar um trabalho de tessitura genuinamente sociológica. “Na medida em que busco recompor a rede de pressões sociais que age sobre essas mulheres, por mais excepcionais que elas sejam. Ao contrário de isolá-las, vamos formar um retrato que inclua a paisagem social. Paisagem essa que oscila entre abrir-se em um horizonte de possibilidades e se fechar em uma opressiva tempestade. Portanto, lanço uma provocação premonitória: Até que ponto a sociedade que proíbe, de certa forma, deseja a subversão feminina?”
Descobertas e surpresas
Perguntada sobre o que de mais surpreendente descobriu na trajetória de cada uma dessas mulheres no curso da pesquisa que antecedeu o processo de escrita, Isabelle primeiramente reconhece: “Essa é a beleza da investigação. Somos sempre surpreendidos”. O importante, pondera a autora, é deixar que as coisas se manifestem, “e não fazer com que elas caibam em preconcepções”. No caso de Joana D’Arc (1412-1431), a pesquisadora lembra que, em geral, muitos pensam conhecer sua história.
“Porém, ela está turvada pela ficção e por idealizações. Ainda que tivesse uma série de desconfianças e quisesse encontrar a pessoa atrás do mito, conheci, lendo seus depoimentos, uma jovem que argumenta muito bem. Do mesmo modo, que não se intimidava diante das autoridades e que foi capaz de entusiasmar e convencer. Uma imagem que nada lembra a pastorinha de cabras doce e ingênua. Que, aliás, ela também não foi, pois, segundo seu relato, ajudava sua mãe a coser, e não ao pai no campo). Além disso me deparei com uma jovem atormentada por contradições. Que incentivava o ataque, mas que não conseguia se deparar com as consequências e as mortes. Foi por essa razão que desenvolvi a ideia de “heroína imperfeita”, humanas.
Maria Quitéria
Já no caso de Maria Quitéria, Isabelle revela que quase toda a pesquisa foi uma surpresa. “A verdade é que conhecemos pouco a história dela. Assim, me deliciei conhecendo uma pessoa que enfrentou as restrições sociais/culturais, conquistou o respeito dos militares e fez uma percurso ascendente e inédito para uma mulher. Sua iniciativa nas batalhas foi fundamental”. Isabelle aponta que, assim como Joana, Quitéria foi uma liderança carismática, capaz de promover o entusiasmo. “Ou seja, um elemento fundamental para as batalhas”.
“São mulheres que, por si, são surpreendentes, mas que de perto apresentam nuances, contradições e traços que fiz questão de capturar”, esclarece.
Pesquisa em campo
Isabelle Anchieta relata que passou quase quatro anos estudando e percorrendo 14 cidades, museus e arquivos, na França e no Brasil. Locais por onde passaram a francesa Joana d’Arc e a brasileira Maria Quitéria, em busca de documentos originais. Do mesmo modo, em contato direto com os locais, pesquisadores e, ainda, esquadrinhando representações sobre essas mulheres. “Por isso, alerto que, o que realizo aqui não são propriamente biografias, nem há pretensão de uma rememoração histórica. Sigo um outro caminho: entrelaço esses conhecimentos como meios para abrir reflexões sociológicas atuais e pertinentes”.
Assim, ela diz ter encontrado, a cada capítulo, uma oportunidade de aprofundar um tema. Tais quais: nacionalismo, a polarização social e a estereotipização dos outros. Do mesmo modo, a liderança carismática, a expressão de si, o heroísmo (imperfeito) e a religião. Ou, ainda, as contradições nas relações entre homens e mulheres, as disputas por reconhecimento e o conceito de revolução, dentre outros.
Linha de frente
Entrelaçar as duas trajetórias, diz Isabelle, serve a um propósito: revelar que a história da mulher não é fragmentária, enciclopédica, nem feita de excepcionalidades. “Quanto mais pesquiso, mais me dou conta de que a história das mulheres é mais fruto de desconhecimento do que de ausências históricas. Elas foram presentes, atuantes. No entanto, as histórias delas não foram contadas – e a memória é sempre traiçoeira quando não registrada. Assim, sabemos pouco – e superficialmente – sobre o papel das mulheres nas revoluções”.
Esse pouco conhecimento, entende ela, dá a impressão de que a história das mulheres é esporádica. “Ou seja, feita de ondas e escassas heroínas. Apesar disso, arrisco afirmar que elas sempre estiveram na linha de frente – ou articulando diplomaticamente – em todas as grandes revoluções políticas e de costumes”, pontua Isabelle.
“Individumanismo”
Para Isabelle, tanto Joana D’Arc quanto Maria Quitéria não só lutaram para ser o que eram, mas por um propósito que as superava. Um propósito comum, no caso, nacional. “São mulheres que se arriscaram por algo que entendiam como justo para a maioria. Essa é uma habilidade que perdemos em um contexto de ampla valorização individual. Nos fragmentamos em grupos identitários e perdemos identificações mais amplas”.
Porém, Isabelle não vislumbra que a saída seja o retorno ao nacionalismo, e, sim, algum tipo de pertencimento mais coletivo, mais humano. “No que denominei de ‘individumanismo’. No sentido de levarmos em conta as trajetórias individuais, mas não perdermos do horizonte esse humanismo em comum. Essa, para mim, é uma das lições que Joana D’Arc e Maria Quitéria nos apontam. Por isso digo que ambas são mulheres do futuro”.
Serviço
“Revolucionárias: Joana d’Arc e Maria Quitéria”
Autora: Isabelle Anchieta
Editora Planeta, 336 páginas.