“Existe a sua verdade, a minha verdade e a verdade”. A frase é de Sotigui Kouyaté, ator africano, mestre das palavras, um griot dos grandes. Ele esteve em BH no FIT de 2004. Sim, aquela edição histórica. Estava no elenco na montagem de Tierno Bokar, com direção de Peter Brook. Foi uma coisa quando eles estiveram na cidade.
Era uma potência em cena. Algo raro. Uma força que também encantou o ator, diretor e professor Isaac Bernat quando o artista esteve no Porto Alegre Em Cena e, depois, no Rio de Janeiro. Tanto que dedicou ao griot nascido no Mali uma tese de doutorado que depois se transformou no livro Encontros com o Griot Sotigui Kouyaté.
São os ensinamentos do mestre que Bernat acumulou ao longo de mais de 10 anos de convivência a essência da oficina que ele ministrará em Belo Horizonte no dia 17 de março. A entrada é gratuita. A atividade faz parte da programação paralela promovida pela temporada do espetáculo Céus, em cartaz no Teatro Bradesco, dias 16 e 17 de março.
Um dos objetivos do curso é trabalhar a sensibilidade dos artistas/alunos. Essa era uma característica muito cara na filosofia de Kouyaté que Isaac abraçou. “O ser sensível ao outro, aprender a compartilhar, a entender a complementaridade”, comenta Bernat.
Segundo ele, Sotigui costumava dizer que as desavenças são geralmente fruto da ignorância do outro. “Ele falava que se você olhar bem no olho de uma outra pessoa, verá o próprio reflexo”. Simbólico isso!
Ao longo das oito horas de trocas de experiências, Isaac Bernat – que também é professor Cal (Casa das Arte de Laranjeiras), no Rio de Janeiro – diz que propõe exercícios muito simples, quase estúpidos. “A gente se enrola. Estamos complicando a vida. Vamos trabalhar muito a questão da escuta, do poder errar. O erro não é um problema”, diz. Ele conta que tem ministrado a oficina em várias partes do Brasil. É sempre uma experiência muito nova para ele, já que cada encontro tem uma dinâmica diferente.
Ansiedade da nova geração
À frente de diversas turmas no Brasil inteiro, Isaac Bernat observa uma ansiedade no jovem ator. “Vejo uma vontade de aprender muito rápido. Não permitem o tempo de se perder. Sotigui dizia que aquele que não conseguir se perder jamais vai conseguir se achar”.
O ator/professor se encanta com a possibilidade de experimentar gêneros e técnicas diferentes. “Sinto que tem uma rapidez que é muito limitadora na formação de um artista hoje”, diz em referência à centena de jovens que desejam carreiras meteóricas na televisão e no cinema.
Quando fala sobre a produção mineira, Isaac Bernat chama atenção a um aspecto ainda artesanal que guardamos. Isso não é nada pejorativo. Pelo contrário. O artesanal está mais em sintonia com o tempo da criação do que com a velocidade do mercado que, diga-se de passagem, está cada vez mais restrito em grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.
No palco
Entre as montagens mais recentes que Isaac Bernat assinou como diretor esta o musical Deixa Clarear, que narra a história de Clara Nunes. Como ator, somente este ano, por exemplo, está no elenco de Agosto, incensada montagem que deu à atriz Guida Viana o prêmio Cesgranrio de melhor atriz e também Céus.
O espetáculo dirigido por Aderbal Freire-Filho tem texto do libanês Wajdi Mouawad. Para quem não ligou o nome à pessoa, ele é sensação da dramaturgia contemporânea mundial. Foi ele quem escreveu Incêndios, cuja montagem brasileira foi igualmente dirigida por Aderbal com Isaac, Júlio Machado, Marieta Severo e grande elenco.
Céus encerra a tetralogia que Mouawad batizou de O Sangue das Promessas. Também fazem parte do pacote peças como Incêndios, Litoral e Florestas. “Acho que das quatro Céus é a mais camerística. Fala sobre o nosso hoje”, detalha o ator.
Além dele estão no elenco Felipe de Carolis – o responsável por montar Incêndios e Céus no Brasil, curador da obra de Wadji por aqui -, Rodrigo Pandolfo, Marco Antônio Pâmio e Karen Coelho. Eles ficam em cena quase o tempo inteiro. “O segredo da peça está na relação entre o micro e o macro. Há uma sacação de pequeno e grande. Por trás de tudo existem as pessoas, as políticas, os governos”, adianta.
A peça visita um lugar muito específico da atualidade ao propor uma discussão sobre o uso da tecnologia. Por isso, é muito comum que pessoas mais jovens se conectem mais rapidamente com a montagem do que com os mais velhos.
A montagem aborda questões reais de maneira ficcional. Para Isaac Bernat, pai da também atriz Júlia Bernat e de uma garotinha de três anos, o texto pegou mais forte “na coisa de ser pai”. “Quem vir a peça vai entender isso e também sobre a questão das aparências. Sobre onde está a verdade”, comenta antes de lembrar, mais uma vez o Mestre Sotigui. Sim, Kouyatè, existe a minha verdade, a sua verdade e A verdade.
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