Dor e Glória, o novo trabalho de Pedro Almodóvar, é daqueles que crescem na memória da gente à medida em que o tempo passa. Sabe aquele grande filme que é melhor nem ver de novo? Pois é! Isso vale para o longa protagonizado por Antônio Banderas, com Penélope Cruz, Asier Etxeandia, Leonardo Sbaraglia, Cecilia Roth, Julieta Serrano, entre outros.
Desta vez, o diretor espanhol conta a história de um também cineasta, da mesma idade que ele e inclusive parecido fisicamente à sua figura. O protagonista encontra-se em uma fase na carreira em que não é preciso provar mais nada a ninguém. Sendo assim, parte em busca de si mesmo. Encontrou alguma semelhança aqui?
Por muitas vezes me peguei pensando quais seriam os elementos capazes de fazer com que Dor e Glória melhore com tempo. Juro que saí da sala de cinema sem saber se eu havia gostado ou não. Hoje tenho certeza que sim! Pedro faz do filme uma metáfora para falar do homem (com todas as suas imperfeições) e da arte (com todos os seus riscos).
Não acredito que o diretor esteja fazendo cinema de uma maneira diferente e muito menos abordando temas que, de alguma maneira, sejam novidade para ele. Tudo isso torna a potência de Dor e Glória ainda mais intrigante.
Nesse exercício (sim, escrever sobre o trabalho artístico de alguém é sempre um exercício de ponto de vista), gostaria de falar sobre dois pontos. O primeiro, o aspecto pessoal que o filme tem. O segundo, a forma como o diretor avalia o papel da arte na própria vida.
Mais sem ser do mesmo
Ao longo da carreira, Pedro Almodóvar nunca escondeu o fascínio pela complexidade humana. Fez isso em meio a diversos exercícios de gênero. Passeou pela comédia, o terror, o melodrama. Falou dos mais variados desejos. Abordou relações entre mãe e filho. Contou histórias sobre todas as orientações e identidades sexuais.
Ou seja, Almodóvar já falou de praticamente tudo o que está em Dor e Glória. Se ainda assim você quiser tirar a prova dos nove, basta se programar para ver a mostra dedicada ao cineasta no Cine Humberto Mauro que vai saber disso.
Para citar apenas um exemplo: Má Educação. O diretor também usou a própria memória como fio condutor para falar sobre, entre outros temas, iniciação sexual. Bem, pelo menos no meu ponto de vista, o filme protagonizado por Gael García Bernal não se aproxima do resultado que Almodóvar alcança em Dor e Glória.
Autoficção
Parece que a medida em que Almodóvar foi amadurecendo (como homem e como artista), foi perdendo o medo de falar de si. E mais, mesmo que o novo filme tenha lá seus exageros – se não tivesse não seria Almodóvar – nas cores (que bela fotografia!) e em determinadas situações, o que fica é a maneira poética como ele aborda o envelhecimento.
Buraco no roteiro? Tem. Mas já não importa. Pedro Almodóvar misturou as temáticas com as quais sempre teve intimidade. O diferencial, no entanto, está na coragem de dizer o “mais do mesmo”, a partir de uma perspectiva realmente pessoal. O próprio disse em entrevista que Dor e Glória é uma autoficção. Ou seja, aquilo que criou e acreditou sobre ele mesmo e sobre o mundo. Diante disso, não resta muito espaço para discussões.
Arte como razão da vida
Um segundo aspecto que me chamou atenção no roteiro deste que é o 36º filme que ele escreve e dirige, é o papel que a arte tem na vida de quem nasceu para se dedicar a ela. Em Dor e Glória, Salvador Mallo, o diretor interpretado por Antônio Banderas, já passou por diversas fases na carreira. Tem trabalhos bem-sucedidos, outros nem tanto. Aqueles que gosta e outros que prefere esquecer o fato de ter feito. Mesmo assim, segue fazendo da arte alimento para a alma. Em outras palavras: ele precisa dar vazão às próprias emoções escrevendo, filmando, atuando. Vale para teatro, literatura, artes plásticas.
À medida em que o protagonista vai amadurecendo, a vaidade vai abrindo caminho. Dar certo, ou receber o crédito já não são coisas que importam mais. No fim das contas, para Salvador, e muito possivelmente para Almodóvar, criar é o que dá razão à própria existência.