Depois de “O Corpo Sublime”, o poeta volta ao mercado editorial com o “As Formas da Casa”, lançado pela Crivo Editorial
Em 2016, o escritor Hugo Lima escreveu um poema que, por motivos diversos, permaneceu inacabado por bastante tempo. “Na verdade, ensaiei diversos desfechos e até cheguei a lê-lo publicamente, em alguns eventos, mas não estava satisfeito”, admite. No entanto, em 2021, logo após concluir o processo de lançamento do livro “O Corpo Sublime” (Editora Urutau), o quarto de sua lavra, Hugo partiu para folhear alguns cadernos e, dessa forma, acabou por reencontrar esse poema. “Daí, fiz cortes, adicionei uns versos e cheguei à forma final de ‘Outra Vez’”, diz, revelando o nome com o qual o poema finalmente veio à luz.
Fato é que “Outra Vez” acabou sendo escolhido por Hugo para abrir a nova incursão dele no mercado literário, “As Formas da Casa” (Crivo Editorial, 56 páginas). E por um motivo que ele consegue delinear bem. “Esse poema reflete um momento de retorno e recomeço, espelhando muitas das minhas experiências naquele instante. A partir dele, outros versos surgiram, retratando, assim, a vivência compartilhada com alguém que voltou a fazer parte da minha vida”. Essa pessoa, prossegue, se mudou para a casa dele, e, assim, os dois começaram a compartilhar detalhes do cotidiano em meio à segunda fase da pandemia.
Diferenças
Sendo assim, organicamente, “Outra Vez” se entrelaçou a praticamente todos os outros poemas por ele já selecionados, dando, assim, a tônica do novo livro. “As Formas da Casa”, vale dizer, traz elementos que o diferenciam do já citado livro que o precedeu, “O Corpo Sublime”. “Este último é um livro denso, com poemas que tratam de violências, preconceitos, de corpos marcados pelas brutalidades ao longo da história. Neles, abordo desde a venda de corpos escravizados até a selvageria praticada contra pessoas transexuais, passando pela violência doméstica, as covardias (praticadas) contra mulheres, crianças e idosos…”, enumera.
Resumindo a ópera, Hugo Lima diz que “O Corpo Sublime” traz muitas camadas para refletir sobre que corpo é esse, tão natural (“porque todos os corpos possuem pele, ossos, músculos, sangue etc”) e, ao mesmo tempo, tão diferente. “Assim, por isso, muitas vezes discriminado, massacrado, desumanizado”. Não por outro motivo, ele admite: “Termino esse livro exausto, enjoado, descrente do mundo e da poesia”.
Poemas solares
No entanto, um vislumbre de esperança emerge com o poema “Outra Vez”, concomitante à já citada retomada da relação amorosa. “Algo me iluminou, como se naquele momento eu precisasse escrever poemas solares, iridescentes… E, nesse mood, os poemas de ‘As formas da Casa’ foram se compondo, se construindo”. Para Hugo Lima, essa transição é perceptível não só no conteúdo de ambos os livros, como também na forma.
Assim, pondera, “O Corpo Sublime” tem poemas “mais extensos, complexos, por vezes, obscuros”. Já o atual, “As Formas da Casa”, poemas breves, com um vocabulário mais leve e delicado. “Desse modo, um é vermelho-sangue, o outro é minimalista. Em ‘O Corpo Sublime’, meu olhar, em diversas passagens, é da pele para dentro. Já em ‘As Formas da Casa’, tento me conectar com as coisas da pele pra fora. Em suma, eu queria escrever sobre as reconexões do vínculo amoroso tendo o espaço da casa – e tudo o que o compõe – como metáfora, pensando aqueles objetos como parte de uma arqueologia dos afetos”.
O que pode se erguer das ruínas
Em uma análise espontânea da própria obra, Hugo Lima confirma que, do feixe de novos poemas, “Outra Vez’ é um indubitavelmente um dos que mais gosta. “Porque sempre que o leio, sinto algo bom. Essa alegria do retorno, de que algo pode, mesmo, se erguer das ruínas. É um poema simples, fala das manhãs de domingo, do Chico (Buarque), dos objetos da casa e da pessoa que eu amava, à época. Enfim, várias referências das quais gosto muito e que, hoje, fazem parte da minha memória afetiva. Pra mim, esse é e será sempre um poema de (re)começos”.
Paz (e desassossego)
Outro que ele destaca, assim, de bate-pronto, é “Teoria da Relatividade”, que, na verdade, confidencia ser a realização de um desejo antigo. “As janelas do meu apartamento se abrem para a Serra do Curral, que, apesar de muito distante, parece tão perto. Fico admirando por horas aquelas montanhas, com uma parte do Aglomerado da Serra de um lado, do Alto Vera Cruz do outro e da tragédia que a mineração está fazendo ao fundo”. Desse modo, Hugo Lima diz sentir um misto de paz (“e lembro sempre do João Gilberto cantando ‘Ave Maria no Morro’, nos fins de tarde, quando os Aglomerados se iluminam”) e desassossego.
No caso do segundo sentimento, a explicação logo emerge. “Porque é bonito, muito bonito, mas corre o risco de acabar. Ao mesmo tempo, aquela Serra está ali há milhares de anos, imponente, resistindo ao sol, às chuvas, aos ventos, às queimadas, às ameaças mais diversas. Isso, pra mim, é um grande ensinamento. Queria muito registrar isso em um poema como forma de memória e agradecimento. Esse poema, antes de ser pra mim ou pro leitor, é para aquela paisagem”, situa.
Influência de Duras
Um dos últimos poemas que escreveu para o livro foi ‘Écfrase’, que, localiza ele, tinha outro título e era muito maior do que está no livro. “Porém, o Marcos (Oliveira), um dos meus revisores favoritos, sugeriu vários cortes. “Cortes esses que, aliás, no início, relutei em fazer; mas acabei cedendo por considerar que, de fato, as estrofes ficariam mais concisas e potentes”.
Acontece que Hugo Lima escreveu esse poema de madrugada, após assistir a uma série de vídeos da romancista, dramaturga e diretora de cinema francesa Marguerite Duras (1914 – 1996) lendo os próprios textos – segundo ele, com imagens maravilhosas ao fundo. “Aquilo tudo me comoveu e acabou resultando na redação desse e de outros poemas, que são uma homenagem a Duras e a tudo que ela nos deixou, por meio de suas mãos, e também às mãos do meu ex-companheiro, que sempre me chamaram muito a atenção”.
Godard
Mas Duras não foi a única referência que se espraiou nos mais recentes escritos de Hugo Lima. Desse modo, o cineasta Jean-Luc Godard foi outro a entrar na lista. ‘Assisti a ‘Acossado’ três vezes, graças a (à cineasta) Agnés Varda e a (à poeta, jornalista e tradutora brasileira) Ledusha Spinardi. Aqueles diálogos sempre mexeram muito comigo. Por vezes, me pego imerso na estranheza daquelas falas, daquele carro, daquele quarto, daquela narrativa”.
E prossegue: “A maneira como Michel e Patrícia (referindo-se aos personagens centrais da trama, vividos por Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg) conversam me interessa bastante. Assim, queria trazer algo daquela atmosfera pro livro, porque, de alguma forma, aquelas cenas retratam um pouco dos meus diálogos com meu ex-companheiro”. Na verdade, Hugo Lima confessa que não foi a primeira vez que fiz isso. “Sou mais da música e das artes plásticas que do cinema, mas alguns filmes me marcaram tanto que eu tentei imprimir algo deles em alguns dos meus escritos”.
Sendo assim, ele diz que há trechos de músicas, de peças de teatro, performances e pinturas que frequentemente emergem nos seus textos. “Esses elementos estão muito presentes no meu cotidiano e essa contaminação – entre linguagens – acaba sendo inevitável”, conclui.