
Foto: Juan Esteves/Divulgação
Hilda
Por Lara Alves
Nunca se falou tanto sobre Hilda Hilst como em 2018. Relegada pelo público durante a vida e restrita a tiragens baixíssimas, a escritora paulista passou toda sua vida esperando reconhecimento e, agora, depois de morta, nunca foi tão famosa e tampouco tão lida. É o que mostra um levantamento realizado pelo pesquisador Cristiano Diniz, que investigou menções à escritora de 1949 a 2018.
Sendo assim, de autora hermética e pouquíssimo popular, a homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) deste ano deu início há algum tempo uma guinada histórica. Suas obras estão sendo completamente reeditadas pela Companhia das Letras. Os textos dramatúrgicos foram republicados pela L&PM Pocket. As obras “O Unicórnio” e “Matamoros” foram adaptadas para o cinema. Uma delas se destacou na Mostra Generation do Festival de Berlim em janeiro deste ano.
Não obstante, a cineasta Gabriela Greeb estreia no próximo dia 2 de agosto o documentário “Hilda Hilst pede contato”. O filme propõe uma viagem de dez anos da diretora pelas tentativas de contato da escritora com o mundo sobrenatural. As imagens foram devidamente registradas por Hilda em fitas cassete ao longo do tempo.
Quem é Hilda?
É incontável o número de pesquisas e projetos que ganharam projeção no último ano. No entanto, mesmo que muito debatida em rodas de conversa e clubes de leitura, a escritora ainda disputa seu espaço no panteão da literatura nacional. Portanto, é preciso romper com os rótulos de “literatura difícil e complicada” atribuídos a ela.
Diante disso, muitos leitores ainda se distanciam da produção de Hilda, considerada pela crítica especializada como uma das maiores escritoras da língua portuguesa do século XX. Sendo assim, quem conhece ainda se assusta com a grandiosidade da produção literária dessa autora, que escreveu durante quase 50 anos. E quem tem noção de quem ela foi se depara com os estereótipos da mulher excêntrica que abandonou a boemia paulista para se refugiar em uma chácara com o intuito de cumprir sua missão. Afinal, quem é Hilda Hilst e por que ela está sendo tão discutida?
Para a jornalista Laura Folgueira, Hilda foi uma mulher muito devota a um projeto de vida. “Ela era completamente dedicada à literatura, sabia o que queria colocar no mundo”, afirma.Laura é coautora do livro recém-lançado “Eu e Não Outra: A Vida Intensa de Hilda Hilst”, que traça um perfil biográfico da vida da escritora. A dedicação à produção literária remonta à construção da Casa do Sol, um refúgio para o qual Hilda se mudou em 1966 e permaneceu até seu falecimento, em fevereiro de 2004.

Foto: Fernando Lemos/Divulgação
Produção intensa
Durante 40 anos, Hilda produziu mais de 28 livros de poesia, prosa e textos para o teatro. Entre eles está o reconhecido “A Obscena Senhora D”, de 1982. Em resumo: a narrativa é um fluxo de pensamento onde a personagem Hillé (um possível alterego de Hilda) indaga a possibilidade de Deus diante do falecimento do marido. “A obra da Hilda pressupõe uma convivência mais longa. Pressupõe que o leitor aceite que, num primeiro momento, não dá para sacar exatamente tudo aquilo que ela coloca”, pontua Luisa Destri. Ela assina a co-autoria do perfil biográfico com Laura.
No entanto, para Daniel Fuentes, filho de Jose Luis Mora Fuentes e herdeiro dos direitos autorais das obras da escritora, a opção de Hilda por trabalhar com temas universais facilita o acesso e o entendimento das obras. Segundo ele, Hilst criou personagens que questionam Deus, a vida, a morte e o corpo,
“Exatamente por serem grandes temas, é acessível. Porque todo mundo que é humano tem medo da morte, se indaga sobre o próprio corpo, são assuntos presentes na vida de todo mundo. Não digo que a Hilda é uma leitura fácil, mas ela também não é inacessível. Hoje, a Hilda vive muito com a molecada, ela acessa um público de gente jovem. É uma escritora infinita, pode ser lida por uma menina de 14 anos ou por um especialista e é tão grandiosa que consegue acertar um soco no estômago de qualquer um. A coisa que eu mais ouço é gente dizendo que a Hilda mudou de alguma forma a vida dela”, destaca.
Obra impactante
Foi esse o impacto da obra da escritora na vida do dramaturgo e diretor Juarez Guimarães Dias quando presenteado com o livro “Ficções”, ainda em 1999. Desde então, desenvolve projetos sobre a obra da escritora. O primeiro foi o “Círculo Hilda Hilst”, que debateu a escritora em 2002 e, no último mês, a estreia do solo “A Obscena Senhora H”, que mescla passagens biográficas com trechos do livro “A Obscena Senhora D”.
“Eu nunca tinha ouvido falar de Hilda, não sabia quem era, achei até que era estrangeira pelo sobrenome quando ganhei o livro de um amigo. Comecei a ler e fiquei apaixonado. Foi um mergulho. A Hilda foi uma curva de noventa graus na minha vida, me abriu as portas para tudo, para a ideia de simultaneidade, para o fluxo de pensamento. Foi um estranhamento e, ao mesmo tempo, um deslumbramento”, explica.
Rompimento
De escritora comportada e fiel à literatura a mulher rebelde contra a falta de divulgação de suas obras e a ausência de leitores, Hilda Hilst lançou em 1989 o que considerou “seu último livro sério”. Diante do silêncio do público, decidiu “salvar sua literatura” através do riso. Dessa revolta nasceu sua trilogia obscena, cujo primeiro livro é o impactante e pornográfico “O Caderno Rosa de Lori Lamby”.
De acordo com o que a própria Hilda Hilst afirmou em entrevista ao Correio Popular, no mesmo ano, ‘Amavisse’ foi o último livro publicado no Brasil para ser levado a sério. “Só espero que não resolvam encontrar implicações hegelianos ou metafísicas nos textos pornográficos”.
Segundo a pesquisadora Luisa Destri, este momento da obra dela, por exemplo, pode ser entendido como uma radicalização do desejo de atingir o outro. “Acho que os livros dela compõem uma trajetória que tem como fio condutor os esforços que ela fez como autora para conseguir dialogar com o leitor. A trilogia obscena foi um momento dessa radicalização e as crônicas foram ainda um outro momento. Quando ela escreve crônicas muito agressivas no jornal ela quer mexer com as pessoas. Ela fala que fica feliz quando recebe cartas dizendo que é asquerosa. Isso tudo faz parte de uma procura da Hilda pelo diálogo com o outro. Enquanto ela não recebia nada de volta, ela radicalizava cada vez mais”, explica a pesquisadora Luisa Destri.

Crédito: Homemadefilms/Divulgação
Mais viva que nunca
Dos movimentos por contato com o público e conquista de leitores, surge ainda uma nova faceta de Hilda Hilst: a tentativa da escritora de se comunicar com os mortos, que se tornou material para o documentário “Hilda Hilst Pede Contato” – da diretora Gabriela Greeb, que participa da Flip deste ano com o lançamento do livro sobre o filme e a exibição exclusiva para setenta pessoas durante o evento.
Segundo a cineasta, o documentário traz uma história. “É como se a Hilda, depois de morta, estivesse num limbo, porque morreu sem ser lida, como se ela tivesse ficado cuidando da obra dela. A partir disso, ela volta para a Casa do Sol e tenta contato com os vivos, invertendo o experimento original”, explica Gabriela.
De acordo com a diretora, o convite de Jose Luis Mora Fuentes, deu início ao projeto em 2008. Ela precisou realizar um trabalho de recuperação das fitas cassete deixadas por Hilda. A escritora gravava suas tentativas de contato com os mortos, entre eles o jornalista assassinado pela Ditadura, Vladimir Herzog, e Clarice Lispector.
“No documentário, eu aproveito os áudios gravados de uma Hilda mística para apresentar uma Hilda total. Numa das gravações ela fala: ‘vocês, mortos, vivem?’. E, na verdade, e acho que catorze anos depois, ela se tornou a prova de sua experiência. Porque catorze anos depois ela voltou com tudo, 14 anos depois de sua morte ela está mais viva que nunca através de sua obra. Ela se tornar somente agora conhecida e mais acessível comprova essa brincadeira de que os mortos vivem”, afirma a diretora.
A homenageada
Hilda Hilst é a grande homenageada da Flip 2018. Sendo assim, programação será quase integralmente dedicada a conhecer, mapear e valorizar a obra hilstiana. Desta forma, o evento abrigará o lançamento do longa “O Unicórnio”, dirigido e roteirizado por Eduardo Nunes. O filme acompanha a trajetória de Maria. O pai da menina deixa a casa e enquanto Maria e sua mãe esperam que ele regresse, o destino das duas cruza com um criador de cabras que vive na região.
“Qualquer adaptação literária para o cinema é muito difícil de ser realizada. Pois a literatura cria uma relação muito íntima entre o autor e o leitor; e quando você realiza um filme, você escolhe apenas uma, entre tantas outras possíveis que uma leitura provoca. E uma literatura como a da Hilda Hilst, onde a poesia é uma presença forte mesmo em sua prosa, não permite uma adaptação convencional. Para mim, a única forma de realizar este projeto era filmar a impressão que o livro criava em mim enquanto eu lia, pois não há uma narrativa linear”, pontua o diretor.
Também durante a Flip acontece o lançamento de livros que revisitam a obra da escritora. Entre eles estão o livro “A Lacraia e o Sapo – Correspondência de Hilda Hilst e Mora Fuentes”. O documentário de Gabriela e o filme “O Unicórnio” entram em cartaz no circuito comercial a partir da primeira semana de agosto.

Hilda Hilst e Daniel Fuentes. Crédito: Instituto Hilda Hilst/Divulgação
Para ler Hilda Hilst
Segundo Laura Folgueira, a importância da Hilda hoje em dia já está bastante clara. “Ela é uma escritora sem paralelos na literatura brasileira. Manteve um nível altíssimo em todos os gêneros literários em que atuou. A importância desse reconhecimento é justamente levar essa obra mais longe, para mais gente”, pontua.
Para quem está em Belo Horizonte, uma dica é acompanhar o trabalho dos clubes de leitura da cidade. Em meados de julho, o “Palavra de Mulher” realizou um debate sobre a obra “Pornô Chic”. Trata-se de uma reunião que aborda a fase erótica da escritora e traz a Trilogia Obscena – composta por “O caderno Eosa de Lori Lamby”, “Contos D’escárnio: Textos Grotescos”, “Cartas de um Sedutor” – e o livro de poemas “Bufólicas”.
“A obra toca totalmente em temas fortes e universais. Nós queríamos explorar essa leitura mais autêntica. Apesar da Hilda ser uma escritora de décadas atrás, ela tem uma linguagem muito impactante e contemporânea”, explica Stella Nardy, jornalista que participa do clube de leitura.
Imersão
Os dois clubes acontecem mensalmente. O Palavra de Mulher é realizado sempre em uma segunda-feira do mês, no Centro de Referência da Juventude. Já o Leia Mulheres BH geralmente acontece em uma quarta-feira do mês, no Sesc Palladium. Acompanhe a programação na página dos clubes de leitura no Facebook.
“Lembro de ter sentado na praia e lido o ‘Tu não te moves de ti’ de uma vez só. Foi a primeira vez que eu li um livro do começo ao fim sem nem parar para comer. Foi a primeira vez que a Hilda me arrebatou”, conta Daniel Fuentes. Ele se tornou leitor da Hilda aos 14 anos.
“Escolher o que ler é muito pessoal. A prosa dela me causa mais envolvimento, ela cria personagens e muito questionadores. Ela faz você entrar em contato com coisas muito profundas e que, ao mesmo tempo, estão presentes em todo mundo. São obras que não permitem que você fique no raso”, avisa a jornalista Luisa Destri.
Entre as recentes reedições e publicações, se destacam “Da Prosa” e “Da Poesia’, da Companhia das Letras. Para quem quer conhecer mais a escritora, duas indicações são “Eu e não outra. A vida intensa de Hilda Hilst”, de Laura Folgueira e Luisa Destri e “Fico besto quando me entendem”. Esta é uma organização das entrevistas de Hilda realizada por Cristiano Diniz. A biografia da escritora tem previsão de ser lançada no próximo ano.

Trecho do documentário “Hilda Hilst pede Contato”. Crédito: Homemadefilms/Divulgação
Casa do Sol e Instituto Hilda Hilst
Hilda Hilst traçou inúmeros questionamentos em sua obra a partir da ausência do pai. Ela era filha única de um poeta diagnosticado com esquizofrenia. Desta maneira, eles se encontraram poucas vezes. A loucura do pai tornou-se uma obsessão. Referencias aparecem, por exemplo em conjuntos de poemas como Balada de Alzira (1951), Do Desejo (1993) e Odes Maiores ao Pai (1963-1966).
Em 1966, ainda no começo da Ditadura Militar, Hilda decide abandonar a agitação da capital paulista. Se mudou para a Casa do Sol, propriedade em Campinas, onde dá vazão à sua grande missão: produzir literatura. A casa fora concebida para ser um espaço de muito trabalho e para receber amigos e artistas. O escritor Caio Fernando Abreu, por exemplo, foi um dos hóspedes ilustres.
“A Casa do Sol, antes de tudo, foi um porto seguro que funcionou para os escritores e para Hilda durante a ditadura. A Casa é em si uma obra, uma criação da Hilda. É a materialização de um modelo de criação extremamente racional. Não dá para ser mais racional que construir uma casa para construir uma obra”, afirma Daniel Fuentes.
Espaço de preservação
Tombada pelo Patrimônio Histórico, a Casa do Sol é sede do Instituto Hilda Hilst. Sendo assim, recebe residentes que pretendem desenvolver algum projeto, tendo ou não relação com a Hilda. “Hoje a gente tem trabalhado muito conceitualmente no que significa a Casa do Sol nos próximos 50 e 100 anos. O instituto sempre teve a visão de que ele é um espaço que deve preservar antes de tudo o espírito. A casa tem essa função de ser um espaço dinamizador da criação”, afirma.
Dessa forma, esta residência que abrigou Hilda Hilst durante seus anos de escrita é o tema do romance “A Casa da Senhora H”. O livro de Juarez Guimarães Dias deverá ser lançado até o fim deste ano. “Eu criei uma relação com a Casa do Sol depois que eu fui até lá visitar e conhecer a Hilda”. Juarez participou da primeira triagem do acervo deixado por Hilda na casa. “Estava tudo guardado e nós pudemos abrir um tesouro, separamos fotos, cartas, documentos, descobrimos inéditos. Foi importante”, conta.