Ao longo da história, várias escritas femininas também se enveredaram pelas narrativas góticas, fornecendo novos elementos ao gênero
Carolina Cassese | Especial para o Culturadoria
O Halloween se aproxima e, junto à data festiva, muitas vezes emerge a vontade de conferir obras que trazem representações da cultuada atmosfera gótica. Pensando nisso, selecionamos cinco histórias escritas por mulheres – porque sim, elas definitivamente contribuíram, e seguem contribuindo para revolucionar o gênero. Como sabemos, não foram poucas as grandes obras de autoria feminina apagadas por décadas. Assim, nunca é demais destacar histórias que criaram novos paradigmas e trouxeram frescor a estruturas previamente estabelecidas.
Algumas das narrativas com pitadas góticas citadas aqui mesclam elementos de terror a outros gêneros, como a ficção científica, o realismo mágico ou o suspense. Em alguns casos, as características góticas estão presentes por meio da ambientação ou, ainda, pelas temáticas abordadas. Porque, sim, o horror pode se manifestar de diferentes maneiras (nem sempre é sobre os famosos jump scares ou cenas muito explícitas). Desse modo, as seguintes narrativas – e uma infinidade de outras obras clássicas e contemporâneas – ilustram que terror também é coisa de mulher.
“Frankenstein”, de Mary Shelley
O romance de Mary Shelley é, sem dúvida, um dos principais clássicos das obras com chaves góticas – com frequência e por motivos evidentes, também categorizado como uma das principais obras de ficção científica. A história, publicada pela primeira vez em 1818, é bastante conhecida. Assim, o leitor acompanha a tentativa obcecada do cientista Victor Frankenstein de criar um ser que desafie as normas da ciência. No entanto, o protagonista acaba ficando horrorizado com o resultado.
Assim, a autora utiliza vários elementos góticos para a construção da narrativa, como a descrição de espaços que enfatizam a ideia de devastação. Desse modo, em algumas passagens, há referências a tempestades e lugares bastante isolados. Por exemplo, o solitário castelo em que o monstro decide se esconder. O clássico já foi adaptado diversas vezes para o cinema e, tal qual, também para outros suportes midiáticos.
Dessa forma, um exemplo recente de intermidialidade é o álbum “First Two Pages of Frankenstein”, da banda estadunidense The National. Como o título indica, as faixas foram inspiradas nas páginas iniciais do romance de Mary Shelley. Em entrevistas, o vocalista Matt Berninger chegou a declarar que conseguiu sair de um angustiante bloqueio criativo graças ao livro. E explicou: “Foi a partir da obra que consegui escrever sobre toda a minha depressão e o lugar onde estava o meu cérebro. A tundra gelada do início de ‘Frankenstein’ se encaixava com onde eu estava mentalmente…”. Definitivamente, o livro de Shelley continua presente no imaginário coletivo.
“A Loteria”, de Shirley Jackson
Considerado um clássico do terror, o conto “A Loteria”, da estadunidense Shirley Jackson, foi publicado em 1948 na revista The New Yorker. A história é ambientada numa pequena comunidade fictícia americana que segue uma tradição anual conhecida como “loteria”, com o objetivo de garantir uma boa colheita e livrar a cidade de supostos maus presságios. A narrativa, que apresenta um desenrolar macabro, explora temas como o comportamento de manada e a irracionalidade das ações humanas.
O conto de Jackson completou 75 anos neste ano e, para celebrar a data, o The New York Times convidou autores para comentarem a narrativa. Stephen King declarou: “Li-o na sala de estudos, no bom e velho Lisbon High School. Minha primeira reação: Choque. Minha segunda reação: como ela fez isso?”. A importância da autora para o terror é tal que, em 2007, foi criado o Prêmio Shirley Jackson, com o objetivo de condecorar os principais lançamentos de suspense psicológico, horror e fantasia sombria. Vale destacar ainda o fato de que “A Loteria” virou HQ. Assim, em 2016, o neto de Jackson, Miles Hyman, lançou uma versão autorizada da história, que chegou a receber o prêmio de Melhor Romance Gráfico Adulto do Solliès Comics Festival 2017. As ilustrações adicionam uma nova dimensão de pavor à narrativa original.
“Amada”, de Toni Morrison
A emblemática obra de Toni Morrison foi publicada em 1987 e venceu o Prêmio Pulitzer de Ficção no ano seguinte. A narrativa examina o devastador legado da escravidão ao narrar a vida de uma mulher negra chamada Sethe, desde seus dias pré-Guerra Civil como escrava em Kentucky até seu tempo em Cincinnati, Ohio, em 1873. A personagem principal é mantida como uma prisioneira das lembranças de sua vida como escrava.
O romance é carregado de características góticas, já que o narrador realiza diversas referências a elementos sobrenaturais – em especial, fantasmagóricos. Além disso, a obra dialoga bastante com a tradição do terror psicológico, já que trata de traumas e lembranças de uma vida difícil.
Sobre o fato de “Amada” nem sempre ser classificado como um livro de horror, o autor Grady Hendrix escreveu: “A maior razão, a meu ver, é que o horror se afastou do literário. Abraçou os filmes de terror e as próprias raízes dele do século XX, ao mesmo tempo que negou as raízes do século XIX na ficção de autoria feminina e fingiu que os escritores do gênero, de meados do século, como Shirley Jackson, Ray Bradbury ou mesmo William Golding, não existiram”.
Resgatar essas histórias, portanto, é também uma maneira de expandir as definições do gênero. Vale destacar o fato de que Oprah Winfrey protagonizou uma adaptação fílmica de “Amada”. Batizada como “Bem-Amada”, a versão foi lançada em 1988.
“Venha ver o pôr do sol”, de Lygia Fagundes Telles
Publicado pela paulistana Lygia Fagundes Telles em 1988, “Venha ver o pôr do sol” é um dos poucos contos de autoria feminina que costumam ser incluídos em antologias brasileiras de terror. Primeiramente, é preciso dizer que a narrativa gótica integra uma coletânea de mesmo nome. A história é ambientada primordialmente num cemitério, onde acontece um encontro entre dois ex-namorados, Raquel e Ricardo. Desse modo, o personagem masculino está inconformado com a separação dos dois e, por isso, propõe uma última conversa no o sombrio endereço. A discussão toma rumos trágicos.
As ruínas, elemento presente em várias ficções góticas, são importantes para esse conto de Fagundes Telles: ao longo da história, os personagens discutem sobre o abandono da necrópole e do mausoléu da família. Além de contar com uma atmosfera macabra, a narrativa gera reflexões sobre importantes temas sociais.
“Voladoras”, de Mónica Ojeda
Recém-lançado pela editora Autêntica (mais especificamente pelo selo Autêntica Contemporânea), a obra “Voladoras”, da escritora Mónica Ojeda, reúne oito contos que carregam elementos de horror. As histórias da equatoriana abordam temáticas como as relações de familiares e de amizade, mesclando cenas cotidianas com acontecimentos insólitos. Em entrevista ao El País, Ojeda chegou a afirmar que “a geografia determina a forma como se vê e como se conta o mundo.” Várias das narrativas presentes no livro tratam da realidade latino-americana e, mais especificamente, da sociedade equatoriana. Dessa maneira, as histórias acabam muitas vezes fugindo do script estadunidense e, por isso, surpreendem ainda mais. A autora é um dos nomes confirmados para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontecerá no próximo mês de novembro.