Sou da turma que enfrentou mais de 12 horas de fila para comprar um ingresso para ver Peter Brook e Teatro da Vertigem no Fit-BH de 2004. Em 1997, na edição do centenário de BH, também estava lá correndo com uma multidão atrás do Generik Vapeur do Parque Municipal até a Praça da Estação.
Antes da reforma da praça, quando ainda havia árvores em nossa praia de concreto, literalmente cai de uma delas na noite de abertura. Tinha gente demais e eu precisava ver.
A onda saudosista toma conta de mim a cada espetáculo que entrei para ver nesse Fit de 2018. Isso porque tenho achado as plateias mais vazias do que em outras edições. O que é uma pena pois as atrações estão muito interessantes. Contundentes, melhor dizer.
Vi três peças no fim de semana. A campeã do meu ranking particular, vale confessar, é a que eu menos botava fé. Até agora, mais de 48 horas depois, fico me perguntando o que me prendeu tanto no espetáculo português Um Museu Vivo de memórias pequenas e esquecidas. Foram 6h30 de peça, com um jantar de 45 minutos.
Longa jornada
Cheguei no Teatro Marília toda armada. Estava decidido, se a história não fosse boa, não ficaria. Já vivenciei diversas experiências longas no teatro, principalmente no FIT. Todas elas, no entanto, os espectadores andavam, bebiam durante a peça, o elenco era maior. Assim, nada mais normal do que duvidar que um monólogo, em palco italiano, fosse capaz de prender a minha atenção.
Acontece que a atriz Joana Craveiro, que concebeu, pesquisou, escreveu o texto, tem tanta paixão – e consegue transmitir – que é impossível não ficar vidrado no que ela conta. Difícil também não encontrar diversos paralelos em nossas histórias e ficar com muito medo no retrocesso ao qual estamos sujeitos com o avanço do fascismo.
Um Museu Vivo de memórias pequenas e esquecidas parte de um questionamento pessoal. Em síntese: por que a ditadura portuguesa durou 48 anos? Joana se coloca muito na história. Munida de muitas referências, dezenas de livros, fala da família dela, da educação que recebeu dos pais e aos poucos foi me conquistando.
Abordou, inclusive, a tragédia do Museu Nacional ao questionar a importância que a memória tem na constituição da identidade de um povo.
A encenação é até simples. A mistura de teatro documentário e palestra, ela fica sentada em uma mesa e a medida em que nos vai apresentando os fatos, projeta imagens em uma tela que fica no centro do palco.
É até difícil explicar. Fato é que na hora que parou para o jantar eu apenas não queria ir embora mas estava louca para voltar. A reflexão que tirei disso tudo é o teatro, para ser bom, precisa ter, antes de mais nada um artista com propósito. Ponto!
Cara gente branca, segura essa!
É o que Ntando Cele, de Black Off, a peça que vi no domingo, também tem de sobra. A temática do espetáculo tem tudo a ver com o recorte curatorial do FIT-BH. A montagem que vem da Suíça/Africa do Sul propõe uma interessante inversão. Na primeira parte Ntando usa uma White face para fazer críticas contundentes sobre o nosso mundo. Como ela diz, o mundo dos brancos.
É impressionante como a energia do espetáculo e da atriz se transformam no segundo ato. A performance ganha o corpo, abandona o texto formal, se apoia na música e na força que as imagens podem ter.
Ntando Cele demonstra um domínio absurdo de tudo que leva para a cena. Sobretudo o próprio corpo. Me chamou atenção também a dedicação da atriz em procurar entender o contexto do país em que se apresenta e, assim, fazer críticas bastante atualizadas sobre a nossa realidade. Black off proporcionou aquele tipo de experiência que continua reverberando depois que a peça termina.
Revolução Russa nos dias de hoje
Entre as três montagens do fim de semana, digamos que Arde brillante em los bosques de la noche, do argentino Mariano Pensotti é a mais soft. Isso não significa, no entanto, menos crítica. Curiosamente, dialoga de maneira bem direta com Um museu vivo.
A peça portuguesa conta – e reflete – sobre a Revolução dos Cravos que acabou com a ditadura por lá em 1974. Os argentinos se apoiam na Revolução Russa de 1917 para falar da sociedade de hoje.
Realmente não é à toa que o nome de Mariano Pensotti tem sido incensado como uma promessa do teatro argentino. Arde brilhante mistura linguagens. Muitas. Se os bonecos abrem muito bem o espetáculo, depois rola uma intertextualidade com o teatro e, por fim, chega a vez do cinema.
A primeira parte – a dos os bonecos – me marcou mais. Tem mais ritmo. Ali vi um grande trabalho de atores associado à técnica. É preciso ser muito bom para que haja equilíbrio entre bonequeiro e boneco. Um não ser maior do que o outro. A montagem alcança isso.
A peça dentro da peça e o filme me soaram um pouco repetitivos. Além dessas questões, vale ressaltar a carpintaria do texto de Pensotti. Ele consegue refletir sobre o legado das revoluções – especialmente a Russa – com humor e ironia. Quando revisamos o passado, as lutas valeram a pena?
De uma certa maneira, essa é uma questão os três espetáculos abordam. Mais do que julgar os resultados de cada uma das lutas, as peças – e imagino que o FIT-2018 de uma forma geral – chama atenção para a necessidade de resistência.