Candidato do Camboja ao Oscar 2025, o filme de Rithy Panh está em cartaz em dois cinemas da capital mineira
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Filme que concorria a uma indicação na categoria Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2025 pelo Camboja (no entanto, acabou não entrando na lista dos pré-indicados, a shortlist, da qual “Ainda Estou Aqui” consta), “Encontro com o Ditador” (Pandora Filmes) entrou em circuito em algumas cidades do Brasil na quinta-feira, 2 de janeiro. Em maio do ano passado, o longa-metragem, dirigido pelo franco-cambojano Rithy Panh (cujo filme “A Imagem Que Falta”, de 2014, foi, naquele ano, indicado ao Oscar), e com a atriz Irène Jacob à frente do elenco, estreou no Festival de Cannes – na competição oficial, diga-se.
Pontuações
Primeiramente, cabe uma observação quanto à escolha do título de apresentação do longa no Brasil. Assim, em vez de simplesmente traduzir ao pé da letra o original (em francês) “Rendez-Vous Avec Pol Pot”- ou seja, “Encontro com Pol Pot” (em tradução livre) -, optou-se por tirar o nome do tirano cambojano e usar a palavra “ditador”. A solução pode (reiterando: pode) estar ligada ao fato de o nome daquele que foi o primeiro-ministro do Kampuchea Democrático, ou República Popular do Kampuchea (PRK), entre 1976 e 1979, não ser, hoje, mais tão familiar assim.
O que, claro, é sintomático de uma sociedade na qual períodos lacerantes e sombrios da história de muitos países – particularmente, os orientais – vão caindo numa espécie de limbo. Quando não, tendo inclusive a existência questionada (mesmo diante de provas irrefutáveis dos mais variados níveis, como imagens e testemunhos de sobreviventes). Neste ponto, é válido salientar a importância de filmes como “Encontro com o Ditador”, que se incumbem de tentar evitar que tais horrores se esvaneçam no curso do tempo.
Camadas narrativas
Um outro aspecto importante, e de certo modo inovador, é que filme “Encontro com o Ditador” mescla três modos de contar a história de um trio francês, formado por dois jornalistas e um intelectual, que chega ao Camboja por meio de um convite oficial do governo, para, na Aldeia Potemkin, entrevistar, com exclusividade, Pol Pot (1925 – 1998), o líder do partido comunista Khmer Vermelho. No caso, seria a primeira entrevista que ele concederia a jornalistas não comunistas.
Desse modo, primeiramente há a inserção de imagens reais obtidas do horror. Essas conferem, ao longa, um viés documental e, assim, transmitem o horror vivido pelo país sob o comando de Pol Pot. Em tempo: a história dá conta de que, no período do comando do ditador, quase dois milhões de cambojanos perderam a vida em campos de trabalhos forçados. Intelectuais foram exterminados, assim como monges budistas e minorias étnicas. O próprio filme faz alusão ao fato de muitas pessoas terem sido mortas apenas por usar óculos – o que as caracterizariam como “intelectuais”. Ao fim, nada menos que cerca de 25% da população de então, do país, foi dizimada. À época, ressalte-se o regime era apoiado pela China, inclusive por meio de ajuda econômica, que foi interrompida em 1978.
Representação
A esse aspecto documental soma-se, em “Encontro com o Ditador”, o da representação, com a presença de atores. Vale lembrar que, neste campo, o roteiro do filme é livremente inspirado no relato da jornalista norte-americana Elizabeth Becker. Ela esteve no país do sudeste asiático como correspondente do “The Washington Post”. Parte do que viveu, relatou no livro “When The War Was Over – Cambodia and the Khmer Rouge Revolution” (“Les Larmes du Cambodge”), que serviu de base à empreitada fílmica.
Os personagens centrais
Neste aspecto, essa camada narrativa é sustentada pelo trio ocidental, o qual a já citada Irène Jacob encabeça. A atriz-musa de Krzysztof Kieslowski (1941-1996), com quem fez filmes como “A Fraternidade é Vermelha”, da Trilogia das Cores do polonês, interpreta a jornalista Lise Delbo. Em 1978, ou seja, com a ditadura de Pol Pot já em declínio e a iminente invasão do Vietnã ao país (que se concretiza em dezembro daquele ano), ela chega ao Camboja como convidada do governo. Por meio deste artifício, o regime – nominado Angkar – intenta passar, para o Ocidente, uma imagem positiva.
Para tal, óbvio, o governo conta com uma calculada e orquestrada manipulação da realidade. Uma espécie de teatro, uma encenação. Além de Lise, compõem a equipe o fotógrafo Paul Thomas (Cyril Guei) e o intelectual Alain Cariou (Grégoire Colin), que estudou com Pol Pot em Paris – filho de um próspero fazendeiro, o líder cambojano estudou por um período na França.
Bonecos de argila
A terceira maneira de contar a história de “Encontro com o Ditador” é das mais inventivas: por meio de figuras e construções das moradias feitas em argila (como na foto abaixo). No caso, há tanto a representação dos personagens do filme quanto de situações relatadas durante a ditadura imposta por Pol Pot. Ao fim, trata-se de um recurso interessante até mesmo para atenuar o relato de tantas atrocidades aos olhos do espectador. Em matérias publicadas na França, Rithy Panh contou que não quis reproduzir, nos sets, alguns dos horrores relatados por sobreviventes ou mesmo documentados por câmeras.
Lancinante
Dando prosseguimento à narrativa, vale dizer que, embora tenha havido um caprichado ensaio da parte do governo de Pol Pot para que tudo saísse nos conformes aos olhos dos dois jornalistas ocidentais, obviamente, Lise e Paul sabem que a aparente “normalidade” está longe de corresponder ao real. Aos acontecimentos vividos pela população. Aliás, Lisa está inclusive imbuída de tentar localizar uma amiga que está no país, sem ter meios de sair. Para tal, leva dinheiro em espécie.
No entanto, a intenção da moça é de imediato desestimulada pelo fotógrafo Paul, a cada momento mais cônscio dos perigos que ameaça o trio. Todavia, temerário, em determinado momento ele próprio sai por sua conta e risco para perscrutar o que está no entorno. E um dos momentos mais lancinantes do filme está quando se depara com crianças agonizando, enquanto moscas sobrevoam seus débeis corpos. Durante o regime, muitas crianças (tal qual adultos) morreram de inanição. Aliás, árvores frutíferas foram abatidas, e muitas pessoas morreram ao ingerir plantas venenosas ou por conta da ingestão de animais mal cozidos – para os que quiserem se aprofundar mais, há vários relatos dos horrores, alguns, inimagináveis.
Em dado momento do filme, o fotógrafo Thomas desaparece. Assim, outra questão passa a atormentar Lise e Alain. Voltar para casa, em segurança, mas sem o colega, ou arriscar a própria pele tentando descobrir o que aconteceu ao colega? A um certo ponto, diga-se, já não há mais dúvida que Thomas foi exterminado assim como um anônimo camponês a quem, em certo momento, é solicitado a falar sobre o regime. Assim, fugindo do script traçado pelo governo para a visita do trio ocidental – a jornalista quer ouvir alguém do povo sobre o regime, e não apenas as fontes oficiais.
O cineasta
Como bem lembra o material de divulgação do filme à imprensa, Rithy Panh, hoje com 60 anos, vem se dedicando a contar a história de seu país por meio de sua câmera. Além da indicação ao Oscar de Filme Estrangeiro, em 2014, recebeu o prêmio de Un Certain Regard em Cannes por “A Imagem que Falta”. Do mesmo modo, há dois anos, o Urso de Ouro de melhor contribuição artística por “Everything will be ok”. Com “Encontro com o Ditador”, ele volta à ficção 15 anos após “Uma Barragem contra o Pacífico”, filme de 2008 com Isabelle Huppert e o falecido Gaspard Ulliel. O longa é baseado no romance “The Sea Wall” (1950), de Marguerite Duras.
Confira, a seguir, o trailer
Serviço
“Encontro com o Ditador” (“Rendez-Vous Avec Pol Pot”, França, Camboja, Taiwan, Qatar e Turquia, 112 minutos)
Em cartaz em dois cinemas da capital mineira
Centro Cultural Unimed-BH Minas (Rua da Bahia, 2.244, Lourdes), às 18h20.
Pátio Savassi (Avenida do Contorno 6.061, Savassi, às 17h20 e às 20h20)