Antes da realização do concerto da Filarmônica desta quinta-feira, 11 de abril, o maestro Fabio Mechetti fez um discurso ao público presente
Na noite desta quinta-feira, dia 11 de abril de 2004, a Sala Minas Gerais abriu as portas ao público ávido por conferir mais um concerto da Filarmônica de Minas Gerais. No caso, comemorativo aos 200 anos de nascimento de um dos sinfonistas mais importantes do século XIX – o austríaco Anton Bruckner (1824-1896) – revisitando, assim, uma das principais e mais belas sinfonias dele, a Sinfonia nº 7. Na regência, estava o maestro Fabio Mechetti, Diretor Artístico e Regente Titular da Filarmônica de Minas Gerais. Como esperado, assim que os músicos e Mechetti adentraram ao palco, houve uma ovação.
Vale dizer que, na plateia do concerto desta quinta-feira, estavam importantes nomes da cena musical mineira/brasileira, como Lô Borges, Flávio Venturini e Lelo Zanetti, para citar alguns. Mas o evento também ficou marcado pela divulgação de um texto, lido na ocasião pelo próprio Mechetti, já do palco, junto aos instrumentistas. O texto leva o título: “Uma sede não se cede”.
Texto
No que tange ao texto (discurso), trata-se de um posicionamento relativo a um assunto que vem movimentando as redes sociais e rodas conversas nestes últimos dias. A celeuma teve início quando, alguns dias atrás, noticiou-se a assinatura do termo de cooperação técnica para a gestão compartilhada da Sala Minas Gerais – no caso, entre a Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig) e o Serviço Social da Indústria (Sesi), que faz parte da Fiemg.
Vale lembrar que desde 2020, o Centro de Cultura Presidente Itamar Franco, onde a Sala Minas Gerais se localiza (bem como também o Espaço Mineraria), é administrado pelo Instituto Cultural Filarmônica (ICF). O espaço fica localizado na rua Tenente Brito Melo, 1.090, no Barro Preto. Com a polêmica já instalada, na quarta-feira, dia 10 de abril, o presidente da Federação das Indústrias de Minas Gerais (FIEMG), Flávio Roscoe, participou de uma coletiva de imprensa, na qual falou sobre o tema, afirmando que o convênio Codemig e Sesi (Fiemg) visava aumentar o número de frequentadores do Centro de Cultura, bem como fomentar atividades educativas e culturais. “Dinamizar o complexo”.
À Revista Concerto, a Codemig teria dito que, “em dezembro de 2023, foi informada pela Secult-MG sobre a intenção do ICF em devolver a Sala Minas Gerais”. No entanto, Diomar Silveira, diretor presidente do ICF, por seu turno, tem dito à imprensa que a Filarmônica nunca teve intenção de sair da Sala Minas Gerais. Tampouco de delegar a administração da sala a outro gestor. Ele salienta que o contrato em vigor traz a garantia da gestão do espaço até dezembro de 2024.
Carta
Com o compromisso de informar os seguidores do Culturadoria, publicamos, a seguir, trechos da carta (discurso) lido por Mechetti, na Sala Minas Gerais, e depois amplamente divulgado. O texto tem início lembrando os 15 anos da Filarmônica, que foram celebrados no ano passado. “Mais do que um aniversário, tal efeméride representou a culminação de um trabalho de construção contínuo, exitoso, do qual todos nós podemos nos orgulhar”, exaltou o maestro. Ele lembrou que foi premissa, para a criação do espaço, conferir a Minas Gerais (e ao Brasil) não apenas mais uma orquestra. “E, sim, um projeto de excelência, diferenciado pela sua missão artística amparada por um modelo de gestão garantidor de seu sucesso”.
Assim, prossegue o conteúdo, passados 15 anos, não deveriam residir dúvidas quanto ao fato de que a Filarmônica está entre as grandes orquestras brasileiras e sul-americanas. Uma posição que, prosseguiu Mechetti, se consolida a cada concerto por características como a qualidade artística e investimento na formação de público e futuros músicos. Tal qual, prossegue, no fomento à criação artística e difusão da música de concerto local, estadual (através de seus concertos nas praças e no interior do estado), nacional e internacional. “Graças às nossas gravações, turnês e transmissões”.
Sala Minas Gerais
O texto continua nos seguintes termos: “Parte crucial deste processo foi o feliz entendimento por parte do governo de que, para consolidar sua prodigiosa trajetória e para posicionar Belo Horizonte e Minas Gerais como polo nacional e internacional da música e da cultura, era necessário que uma Sala fosse adicionada a esse projeto. Não fosse a Filarmônica e o impacto de seu sucesso em seus primeiros anos de vida, a Sala Minas Gerais não existiria”.
“Ela foi concebida com o mesmo pensamento que definiu a formação da Filarmônica, não para ser mais uma sala de uso múltiplo como já temos na cidade, mas para ser a melhor sala de concertos do Brasil. A Sala Minas Gerais foi criada para ser a Sede da Orquestra Filarmônica, como atestam documentos oficiais da própria Codemig publicados em 2011. Neste ponto, Mechetti leu um trecho do documento.
Sobre a construção
A esta parte, ele lembrou que a preocupação original, que deu início ao projeto do Centro de Cultura Presidente Itamar Franco, “privilegiou a qualidade e a competência na escolha de profissionais de grande
reconhecimento, tanto no Brasil como no exterior”. “Cada item de sua construção foi escolhido tecnicamente para conferir a ela o status que possui. Recentemente a Sala da Filarmônica de Nova York, o David Geffen Hall, passou por uma significante reforma acústica e contratou exatamente a mesma equipe de engenheiros acústicos que desenhou a Sala Minas Gerais. Ela é uma das únicas salas, no Brasil e na América Latina, especificamente planejada para a execução de concertos sinfônicos”.
Projeto sinfônico
Prossegue o comunicado: “O desenho acústico e arquitetônico que aqui temos foi propositadamente concebido para garantir as melhores condições acústicas: as velas laterais, o teto móvel, as paredes côncavas e convexas que a circundam, o tecido das poltronas, etc. Todos esses detalhes foram determinados carinhosamente para garantir sua qualidade e honrar o investimento financeiro e político do estado de Minas Gerais num projeto desta envergadura. (…) Juntos, Filarmônica e Sala se consolidaram ao longo dos anos como o maior e mais bem sucedido projeto sinfônico da América Latina neste século”.
Na sequência, Mechetti pontuou ser “um tanto estranho” ters que defender esse arranjo “tão recorrente e óbvio que é a relação de uma orquestra com sua Sala”. E citou a Filarmônica de Viena e a Musikverein, Filarmônica de Berlim e a Philarmonie, Amsterdam e Concertgebow, Leipzig e Gewandhaus. “E, para citar apenas um exemplo mais próximo, mas igualmente relevante, a OSESP e Sala São Paulo”. Mechetti frisou que em nenhuma dessas salas vê-se uma administração desvinculada da sua missão essencial, onde os interesses de suas orquestras e da cultura de seus respectivos centros não sejam incorporados e o respeito pelo patrimônio não seja prioridade”.
Ainda de acordo com Mechetti, a Sala Minas Gerais é um Stradivarius, “um instrumento único, valioso, frágil, de qualidade ímpar como poucos no Brasil e no mundo”. “Assim, sua guarda deve ser feita por aqueles que demonstram o mesmo carinho, competência, responsabilidade, apuro e amor que artistas
conferem aos seus instrumentos”.
Foi então que o maestro entrou mais diretamente no assunto. “As notícias veiculadas recentemente e as naturais repercussões que se seguiram causaram uma grande consternação à Filarmônica e àqueles que entendem sua relevância e responsabilidade cultural”.
Confira, a seguir, o texto restante, na íntegra.
“Não vale a pena entrar aqui em detalhes do Acordo em si ou da maneira como o processo foi conduzido. Também não vale a pena responder, uma a uma, às diferentes narrativas que estão sendo veiculadas na imprensa e nas redes sociais. Mas, basta dizer que o acordo, do qual não somos partícipes ou signatários, manifesta uma atitude mal concebida, desnecessária e, acima de tudo, desrespeitosa. Nós, que estamos envolvidos com esse projeto desde sua criação, não compartilhamos dos argumentos oferecidos como justificativa. São eles: Nós é que pedimos para devolver a Sala? Quem em sã consciência devolveria algo que tanto lutou para ter? A troco de quê, concordaríamos em entregar a Sala a uma outra instituição para sermos subservientes a ela? Uma Sede não se cede.
Argumentos
E mais: “Em coletiva de imprensa realizada na semana passada foi dito que o custo de manutenção da Sala é acima de R$ 4,5 milhões. Isso é verdade. O que não foi comunicado na ocasião é o fato de que é o ICF quem paga esse custo, tendo que captar esses recursos na iniciativa privada. Portanto, do ponto de vista financeiro, a CODEMGE não sofre prejuízo nenhum com o atual arranjo com o ICF.
“As partes signatárias do tal Acordo desconhecem que a Filarmônica utiliza a Sala uma média de 270 dias ao ano. Para cada concerto, como o desta noite, são necessários 5, 6 ensaios. Nada acontece por mágica assim que o maestro começa a agitar sua varinha de condão. Seria o mesmo que assumir que um time de futebol profissional que joga geralmente quartas e domingos, deixam seus jogadores ociosos no resto da semana. Parecem desconhecer que além de concertos de Assinatura temos atividades educacionais, didáticas, concertos de câmara, concertos e atividades da nossa Academia e a locação do espaço para outras apresentações”.
Utilização
Só neste ano, garantiu Mechetti, serão mais de 300 dias de utilização. “Parecem também desconhecer que um equipamento como esse, carece de períodos de manutenção: manutenção esta que vem sendo
paga não pelo proprietário do prédio, mas pelo ICF. Como afirmei anteriormente, a SMG não existiria não fosse a Filarmônica, e seu uso é, por definição e mérito, prioridade da Orquestra. Mas ela nunca foi pensada para ser de uso exclusivo da Orquestra. Isso não existe e nunca existiu. Essa visão não só é equivocada, mas vai de encontro às próprias necessidades da Orquestra, cujos recursos arrecadados por contratos com terceiros ajudam em sua sustentabilidade”.
O maestro citou que sim, o prédio é um ativo da CODEMGE. “Todo prédio, por mais grandioso que seja, é
apenas um corpo sólido, estático. Mas, quando o aço frio de uma estrutura é transfigurado pela
chama ardente da criação artística, no nosso caso específico: a música, ele deixa de ser um ativo.
Este corpo adquire alma e, com esse intangível, mas inegável valor agregado, torna-se patrimônio
imaterial pertencente a toda sociedade. É na qualidade e constância dessa produção contínua e
incomparável realizada aqui toda a semana que ele transcende seu status imobiliário e adquire
relevância cultural. E assim, como patrimônio que é, a Sala Minas Gerais não pode ser tratada com desrespeito, descaso e desvio de sua finalidade essencial. Sua custódia deve ser honrada àqueles que vem demonstrando competência, seriedade, amor e responsabilidade com a coisa pública”.
Objetivos
“Independente das versões de um lado ou de outro e dos acirramentos que isso infelizmente traz, o que afinal queremos? O certo. Martin Luther King disse: Nunca é a hora errada para se fazer a coisa certa. Não podemos deixar que esta seja a hora certa para se fazer a coisa errada. O certo sempre deveria ser legal. O certo é o diálogo e não subterfúgios”.
E mais: “O certo é a transparência das ações e não artimanhas sub-reptícias. O certo é confirmar, antes da celebração dos 10 anos dessa maravilhosa Sala, sua vocação de Sede da Filarmônica e uma Casa aberta a todos que compartilham da alegria de poderem se utilizar dela como fonte de cultura e símbolo de orgulho de todos os mineiros. Uma Sede não se cede. Queremos que nos deixem trabalhar e nos incentivem a continuar a realizar nosso papel enquanto instituição produtora de cultura. Educar. Queremos enriquecer a vida das pessoas. Também queremos continuar a dar orgulho a Minas Gerais”.
“Queremos somar”
“Se a real vontade da FIEMG, expressa pelo seu presidente em declarações à imprensa, é
simplesmente ajudar o governo e a cultura do estado, que o faça, não abrindo o espaço para que
se transforme num salão de eventos, mas que abra as portas, com a força e influência que exerce
entre as indústrias mineiras, para que mais delas passem a ser apoiadoras, patrocinadoras,
parceiras deste projeto vencedor que é a Filarmônica. Esse tipo de colaboração da FIEMG seria
visto como um ato visionário, efetivo e cidadão, trazendo não a desconfiança, mas a gratidão de
toda a sociedade. Enfim, queremos somar e não dividir”.
Músicos
“E a nossa Orquestra? Grupo extraordinário de verdadeiros servidores da Cultura em nosso
estado e vítimas inocentes das artimanhas ardilosas que visam não o bem da Filarmônica, como
sugerem os signatários desse acordo, mas enfraquecer o projeto a ponto de o tornar
insustentável. Por que é tão difícil para aqueles que realizam um trabalho de excelência, não só
nós, mas várias outras organizações culturais no Brasil, fazer entender aos órgãos públicos a
dimensão do que fazemos e os resultados positivos que isto traz à saúde da sociedade e à imagem
do estado e do país? A excelência não se dá por acaso ou insistência. Se dá pelo trabalho
abnegado, dedicado, competente, exemplar que nossos músicos trazem ao palco, semana após
semana. Ao invés de minarem nossa habilidade de prosperar, governo e iniciativa privada
deveriam investir ainda mais naquilo que comprovadamente dá certo, construindo assim um
legado comum em benefício da sociedade como um todo”.
E mais
Eu tive o privilégio de estudar com um dos maiores músicos do século XX: Leonard Bernstein (aquele do filme Maestro). Na ocasião do assassinato de John F. Kennedy, ele realizou um concerto com a Filarmônica de Nova York, executando a Segunda Sinfonia de Mahler, no qual disse: “Como músicos, esta será nossa resposta à violência: fazer música mais intensamente, mais lindamente e mais devotadamente do que nunca o fizemos antes.” Creio ser esse o verdadeiro papel das artes e da cultura no processo civilizatório da humanidade, e isso é o que continuaremos a fazer”.
“Enfim, Filarmônica e Sala são irmãs que carregam o mesmo sobrenome, unidas por Minas Gerais. Uma Sede não se cede. Vida longa à Nossa Filarmônica. Vida longa à Nossa Sala Minas Gerais”, encerrou o texto.