Com romance de estreia, “Ruína y leveza”, Julia Dantas foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2016
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
“Ela se chama Rodolfo”, segundo romance de Julia Dantas, começa com uma porta emperrada. Murilo insiste, mas a entrada do apartamento recém alugado não cede. Assim, o homem desiste e retoma a árdua disputa contra a fechadura diversas vezes. Acredita ter caído em um golpe, afinal, alugara a residência de uma desconhecida, sem nenhum encontro presencial, contrato ou garantia. Numa última tentativa, a chave gira e a porta se abre. O que ele não esperava era encontrar ali dentro outro morador: uma tartaruga.
O nome da tartaruga é Rodolfo, que pertence – ou pertencia?, ele não sabe – à dona do apartamento alugado. “Ele tenta entender o que terá levado alguém a escolher uma coisa tão estranha como bicho de estimação: não dá para acariciar, não protege a casa, não esquenta os pés”. Rodolfo é a chave para que Murilo dê início a um curioso diálogo com sua misteriosa locadora, Francesca. “Ela se chama Rodolfo” é lançado pela DBA Editora.
O início de um longo diálogo
“CARO MURILO,
que alegria trepidante receber a sua mensagem. Andei preocupadíssima com Rodolfo. Tive que abandoná-lo nas circunstâncias mais impiedosas e temi que ele precisasse aprender a se virar sozinho.”
Murilo e Francesca começam, então, uma longa troca de emails a respeito da tartaruga. Mas não só. A mulher indica para seu inquilino uma série de endereços em Porto Alegre, habitados por personagens pitorescos, com a esperança de que algum deles aceite cuidar de Rodolfo. A cada recusa, Murilo passa a se afeiçoar um pouco mais à tartaruga – seu caminhar em linha reta, a velocidade do seu passo que, por vezes, pode surpreender, e o fato de que, ele acredita, o bicho parece reagir ao ser chamado pelo nome.
Na medida em que cria laços com o pequeno ser, ele também parece se conectar cada vez mais com Francesca. Nas trocas de mensagens, a mulher diz pouco de si. Murilo nada sabe sobre ela ou seu paradeiro – diz estar viajando. Ela está sempre coberta por um véu de mistério, entrelaçado por um vocabulário que, por vezes, aparenta pertencer à outra época. Mas suas mensagens parecem sempre propor uma reflexão ao seu destinatário: e Murilo se engaja neste jogo.
Uma Sherazade contemporânea
Ao ler as breves histórias que Francesca lhe conta – narrativas estas carregadas por um desejo de vida e um olhar poético para o mundo que observa -, Murilo passa a olhar para dentro de si. Refletindo sobre suas próprias experiências, as dores recalcadas no mais profundo do eu e os traumas das relações de afeto que o seguiram até ali: com os pais, com a irmã e com a ex-namorada, que o acusa de ser sensível demais, por quem nutre o desejo da reconciliação – “Às vezes, tu parece uma mulherzinha”.
Julia Dantas constrói uma persona tão interessante em Francesca, uma Sherazade que diz mais dos outros que de si, que hipnotiza, enfeitiça o personagem e o leitor. Pouco a pouco juntamos as breves peças do quebra-cabeça de sua existência que ela solta ali e acolá. “Quem é essa mulher que lhe fala de meninos pescadores e receitas de pão? Já procurou por Francesca Ramos em todas as redes sociais, mas não encontrou alguém que pudesse ser ela. Como alguém faz para desaparecer com tanta perícia?”
Se é duro o casco de uma tartaruga, são duros os cascos de existências marcadas por fraturas, por feridas – umas ainda abertas, outras mal-cicatrizadas pelo tempo. Com uma sensibilidade comovente, Julia Dantas diz em “Ela se chama Rodolfo” sobre os afetos e os traumas que compõem um ser. Num gesto muito genuíno, ela reflete também sobre os significados do ser homem e do ser mulher e, sobretudo, sobre a descoberta de que a carapaça do gênero que parece, por vezes, nos aprisionar, pode ser permeável.
Encontre “Ela se chama Rodolfo” aqui
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural, sempre gasta metade do seu horário de almoço lendo um livro. Seu Instagram é @tgpgabriel