Curadoria de informação sobre artes e espetáculos, por Carolina Braga

Diálogo crítico sobre a peça ‘O Imortal’

O crítico convidado Henrique Perez dialoga com o dramaturgo Patrick Pessoa sobre O Imortal, peça com Gisele Fróes no quadro ‘Diálogo Crítico’ do Culturadoria

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É interesse do Culturadoria fomentar não apenas o olhar crítico para os espetáculos teatrais mas também buscar um diálogo entre quem expõe suas impressões e quem participa ativamente da criação da montagem. Nesse sentido, com menos frequência do que gostaríamos, lançamos o projeto da Crítica em diálogo.

Basicamente ele consiste em enviar para a equipe de produção da peça analisada o texto crítico antes de publicado. Assim, após a resposta dos criadores, o que vai para o ar é uma conversa, são provocações mútuas o que, em nossa concepção, contribui na exploração de novos caminhos para a crítica teatral.

Sendo assim, os textos abaixo trazem o diálogo crítico entre Henrique Perez, que escreveu as impressões sobre o espetáculo O imortal, dirigido pelos irmãos Guimarães com a atriz Gisele Fróes, e Patrick Pessoa, que também é crítico de teatro e assina a dramaturgia em parceria com Adriano Guimarães.

Foto: Ismael Monticelli/Divulgação

 

 


Impressões Críticas: O Imortal

Por Henrique Perez

Uma mulher (a princesa de Lucinge) recebe do antiquário Joseph Cartaphilus os seis volumes da tradução inglesa da Ilíada, de Homero. Dentro do um dos volumes, descobre um manuscrito escondido. É a história de um Soldado Romano que partiu em uma jornada épica atrás de um rio que lhe conferiria a imortalidade. Publicado originalmente como a história de abertura do livro “O Aleph” (1949), de Jorge Luis Borges, eis o conto “O Imortal”, adaptado por Patrick Pessoa e Adriano Guimarães, dirigido por Adriano com seu irmão Fernando e encenado como um espetáculo solo por Gisele Fróes.

Em uma atmosfera informal, Gisele (ainda como ela mesma) recebe o público na entrada do teatro e diz uma ou outra amenidade enquanto ele se acomoda no teatro. Aliás, a sala escolhida para a temporada em Belo Horizonte, no 2º andar do CCBB, é propícia tanto para tornar íntimo o diálogo entre artista/plateia quanto para dar ao deslumbrante cenário (de Adriano Guimarães e Ismael Monticelli) a magnitude que ele merece. O espetáculo começa definitivamente quando a atriz convida o público para ouvir com ela uma canção de Iggy Pop: “A Machine for Loving”. A música dá o clima para a história começar. Do mesmo disco onde está a canção (“Préliminaires”, 2009), vem a versão em inglês de “Insensatez”, canção de Tom e Vinícius que evoca o Prelúdio N°4 em Mi Menor, Opus 28, de Chopin

Os dramaturgos se saem muitíssimo bem na (supostamente) impossível tarefa de adaptar um autor tão difícil (em forma e conteúdo) como Borges e fazem isso com a maior fidelidade possível ao texto. Uma única alteração mais notória para quem está familiarizado com o conto original seria a data do desfecho da história do Soldado Romano: ao invés do dia 4 de outubro de 1921; 14 de junho de 1986. A licença, que não traz prejuízos para a trama, é plenamente aceitável e até poética: 14 de junho de 1986 é o dia da morte de Jorge Luis Borges. Cabe ressaltar que o assombroso virtuosismo com que Gisele diz (sim, dizer, tornar vivo, mais do que interpretar) o texto colabora para a compreensão da história e dos múltiplos significados contidos nela. Ela nunca deixar de ser ela mesma, ao mesmo tempo em que é o Soldado, e circula pelos dois em questão de segundos. É extremamente natural, ao mesmo tempo em que reforça ou descobre nuances impensados até mesmo pelo mais afinco estudioso da obra de Borges. E deixa claro aos olhos do público sua relação pessoal com a história contada. É bonito constatar um espetáculo solo que parte do desejo de uma atriz em dividir com o público uma história que ela considera relevante, e não pura e simplesmente exibir seu talento.

O cenário – um aglomerado de caixas numeradas e livros de história, arte e teatro – poderia facilmente funcionar como uma instalação. Ele intriga o espectador sobre seu significado, e sua magnitude ajuda a dar o tom épico da narrativa contada por Gisele. E é auto suficiente, pois ela jamais interage com ele. No final, quando o texto subverte o primeiro conceito de imortalidade, o cenário se explica: é a verdadeira Cidade dos Imortais, onde autores que já morreram permanecem vivos através de suas palavras e idéias. Como Chopin, e Tom, e Vinícius. Como nossos avós e bisavós.

Ao final da peça, é impossível permanecer imune às provocações do texto de Borges, e não rever a nossa própria vida, o nosso próprio jeito de enxergar a morte e qual o legado que deixamos para o mundo e que nos fará sermos imortais. Uma catarse mental.

 

Foto: Lenise de Melo / Divulgação.

 


Carta para Henrique

 

Prezado Henrique,

depois de conversar longamente sobre a tua crítica com Adriano (diretor), Bianca (produtora) e Gisele (atriz de “O imortal”), eles me pediram para redigir a nossa resposta. Todos agradecemos pelo teu olhar cuidadoso e ficamos sinceramente felizes com o fato de você ter sido tocado pelo nosso trabalho.

Como lhe disse ontem após o debate, o fato de a tua crítica ser antes de tudo elogiosa e não apontar diretamente nenhum problema na construção do espetáculo torna, de nossa parte, difícil uma resposta. A vontade imediata é simplesmente agradecer pelo teu olhar e ponto final.

Em respeito à interessante proposta do site no qual a crítica será publicada, no entanto, que condiciona a publicação do teu texto a uma resposta dos envolvidos na produção, fomentando indispensável diálogo entre crítica e criação, eu gostaria apenas de fazer algumas provocações a você. Essas provocações não têm o objetivo de dizer o que você deveria ter visto em nosso espetáculo, mas antes o de levantar algumas questões que podem levar este nosso diálogo a continuar.

Na análise da operação dramatúrgica que realizamos a partir do texto do Borges, gostaria de te perguntar o seguinte: como você entende o sentido das duas músicas cantadas por Iggy Pop que “adicionamos” à estrutura do conto original e que funcionam como uma espécie de moldura do espetáculo, vindo uma no início e a outra no final? Por que teríamos escolhido justamente “Machine for loving” e não outra música qualquer? Além de “criar um clima” e de convidar os espectadores a entrarem em um outro universo, qual seria a função eminentemente dramatúrgica dessa canção? E quanto à “Insensatez”, cantada pelo mesmo Iggy Pop na sua versão em inglês como fechamento do espetáculo, qual é a relação que você enxerga entre ela e o sentido de nossa adaptação? Você enxerga alguma relação entre o fato de Iggy Pop cantar uma tradução de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, dois “Homeros dos trópicos”, e o fato de Gisele ter encontrado o manuscrito de Marco Flaminio Rufo ou Joseph Cartaphilus (o nome importa menos que a odisseia vivida!) dentro da tradução da “Ilíada” para o inglês feita por Alexander Pope, “a melhor tradução de Homero que existe na terra”? E qual seria, finalmente, o sentido de usar a canção de Chopin durante a saída dos espectadores da sala do teatro? Em suma: qual é a relação entre música e texto no nosso espetáculo?

Ainda com relação à questão da tradução de uma língua para outra – a língua de Homero para a língua de Borges; a língua de Borges para a língua de Iggy Pop; mas sobretudo a língua da literatura para a língua do teatro, a língua de todos esses “mestres” para a nossa – você concorda com a hipótese salomônica, citada por Borges como epígrafe de “O imortal”, de que “não há nada de novo sob o sol”? Faz sentido para você a ideia de que criar não pode nunca ser “inventar a partir do nada”, mas tão somente ressignificar o que de algum modo já existe e foi moldado e transmitido por outros que vieram antes de nós? Você enxerga a relação entre essa tese e o cenário do espetáculo?

Finalmente, você concorda com a visão de imortalidade apresentada pelo conto de Borges? Uma imortalidade antes cósmica do que pessoal? E, na tua opinião, qual seria a articulação possível entre essa concepção de imortalidade e o problema da autoria, da leitura/interpretação/tradução como criação, central na obra desse que foi o maior escritor-leitor (ou leitor-escritor!) do século XX?

Um abraço,

Patrick

 

Confira a entrevista de Gisele Fróes no Culturadoria sobre a peça O Imortal

 

 

Caro Patrick,

Realmente o formato de uma “crítica dialógica” é um tanto inusitado. Agradeço as provocações, e entro aqui em campo de suposições próprias, mais emocionais do que racionais, para tentar respondê-las. Embora tenha ouvido a canção “A Machine for Loving” e lido sua letra diversas vezes desde que vi o espetáculo pela primeira vez, a associação mais direta que faço com a peça é com o cachorro Argos, que aqui é o próprio Homero. O que seria o cachorro de Iggy Pop? Já a canção “Insensatez” resolvi mais facilmente. Chopin vive em Tom e Vinicius que vivem em Iggy Pop. E assim a música é imortal. Mas será só isso? Gisele se transformou na princesa que encontrou o manuscrito?

Como discordar de Borges? E viva o esquecimento! No cenário estão todos os autores cujas obras habitam nosso inconsciente mesmo que esqueçamos disso?
Quanto a questão da imortalidade, preciso concordar. Ênfase na palavra precisar. Aceitar a mortalidade do corpo e procurar a imortalidade da alma e das ideias foi o que mais me tocou nesse espetáculo. A autoria nada mais é do que a recriação, certo? Fruto do esquecimento? Fruto dos que vieram antes? Será isso realmente um problema?

Mas uma vez, parabéns pela peça. E por mais perguntas do que respostas.
Abraços,
Henrique

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