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Teatro

Diálogo Crítico: as reverberações psicanalíticas de ‘Mergulho’

Glenio Campregher

Culturadoria dá continuidade à série Diálogo Crítico com um convidado. Fernando Araújo, psicólogo e antropólogo é quem escreve sobre Mergulho. O espetáculo dirigido por Rita Clemente, com André Senna, Flávia Pyramo e Bruno Figueroa esteve em cartaz durante o Verão Arte Contemporânea 2018.

 


Crítica de Fernando Araújo

Escrever a respeito de um espetáculo, remete-nos, antes de tudo, a nossa própria experiência, vivências e caminhos pelos quais transitamos em nossa formação. O elemento subjetivo intervém de forma incisiva na análise que fazemos. Cria-se uma dialética com “a verdade” que o espetáculo, originalmente, traz em sua concepção. Dito de outra forma, apreciamos uma obra de arte através de nosso próprio gosto.

A peça Mergulho, dirigida por Rita Clemente trata da relação entre dois irmãos, Luis e Márcia, mediada pela presença de um vizinho, Hélio. O elenco é formado pelos atores André Senna, Bruno Figueroa e Flávia Pyramo. O enredo se desenvolve em torno de acontecimentos ocorridos em uma casa, residência de infância dos irmãos.

O foco nervoso é um buraco, aparecido subitamente no chão da sala. Ele mantém uma ligação oculta com a piscina do quintal. Em torno do (curto)circuito formado pelo buraco e a piscina transcorre toda a peça, ou toda a água que flui pela peça. Trata-se de um espetáculo de conteúdo psicológico. O conflito que dinamiza a peça aponta para relações intrafamiliares e os afetos que por elas circulam.

Relações

Confrontando Mergulho a um monólogo anterior encenado pelo ator André Senna,  O Urro (dirigido por Carlos Rocha Carlão e Gil Amâncio), é importante assinalar semelhanças e diferenças. De início: as duas peças tratam de incômodos existenciais.

O monólogo investe na discussão de um mal estar social, um desajuste do homem que vive nas cidades contemporâneas – embora não sendo explicitamente político, como aliás são grande parte dos incômodos brasileiros na atualidade. Mergulho não segue a mesma cartilha. Existe, sim, um conflito, leitimotiv da peça, mas este nunca sai do círculo familiar.

Paralelos

O Urro nos arrasta em direção a uma psicologia política. Mergulho se assenta na clássica psicologia familiar. De um lado, O Urro é antropológico, de outro, Mergulho é psicanalítico.

Se Mergulho saísse em algum momento da constrição familiar, talvez se pudesse cantar: “E um rio de asfalto e gente / entorna pelas ladeiras / entope o meio fio…”. Mas não é o meio-fio, nem as ruas do espaço público que “entopem” na peça. Sutilmente, seu olhar se dirige para um terreno mais circunscrito. (Importante ressalva a ser feita: ambos os conflitos a que se faz menção são contemporâneos e tratam de vivências humanas atuais).

É a relativa simplicidade do argumento da peça, quase um esquematismo, que torna Mergulho forte. O simples é belo. E a beleza de Mergulho é construída a partir de diversos núcleos que se combinam com harmonia para dar a impressão geral de resultado bem feito.

Mergulho VAC2018. Fotógrafo: Glenio Campregher

 

Elementos cênicos

A música incidental – trilha sonora original de Márcio Monteiro – consegue criar um clima de mistério. Faz compasso perfeito com a iluminação bem pensada. A luz se divide pelos vários espaços cênicos: a sala da casa, onde acontecem os embates verbais e físicos entre os irmãos; uma luz focal que incide sobre o rosto de ambos, quando contemplam o jardim da casa, além de dois espaços quase fantasmagóricos.

No primeiro deles, a figura oculta/visível do vizinho bombeiro, vestido com seu escafandro luminoso, permanece como “um terceiro”, mostrando ao público que os embates entre Luis e Márcia são mediados. No outro plano iluminado, uma janela de vidro nos fundos da casa (ou fundo do palco), se projeta uma luz criativa que separa o espaço cênico visível e o espaço cênico imaginário. Aliás, este espaço imaginário é o quintal da casa, onde está situada a “famosa piscina semi-olímpica de um semi-campeão”, grande motor da peça.

O vizinho

Torna-se imprescindível tecer alguns comentários sobre Hélio, o vizinho. Na perspectiva psicológica/psicanalítica da peça ele é o analista. Com suas inserções, facilita a visualização dos conflitos/buracos da casa/família. Inclusive, um pequeno detalhe reforça o personagem neste papel: quando Márcia o beija, imediatamente se pensa no amor transferencial sentido pelo analista.

Ainda nesta perspectiva, algumas observações sobre o relacionamento entre os irmãos. Freudianamente, o amor entre irmãos é um deslocamento do amor edípico do filho pela mãe. E os diálogos estabelecidos pelos personagens não fogem a este esquema.

Márcia reafirma que foi a responsável pelos cuidados com o irmão mais novo, Luis. E cuidados envolvem afeto, mas também raiva. No caso, raiva ruminada ano a ano, devido a Márcia dedicar sua vida a cuidar da herança familiar. Afinal, ela continuou a morar na casa para mantê-la impecável (ou quase), embora pudesse ter alçado vôos mais amplos e livres, como o próprio irmão insinua. Permaneceu no lugar de mãe?

No entanto, ainda no compasso psicanalítico, não sabemos se por intenção da diretora, ou não, a relação entre os irmãos não atinge um patamar de sexualidade. Oscila entre o lírico, quando se lembram de brincadeiras da infância, e o violento, quando vêm à tona gestos plenos de agressividade e palavras envenenadas de ódio. Amor e ódio, material psicanalítico, por excelência.

Diálogos com cinema 

Como disse logo no início, ao escrever sobre um espetáculo nossas referências subjetivas se fazem valer em sua apreciação. E a primeira que me assoma vem do cinema: a película argentina Dos Hermanos (direção de Daniel Burman, com Antonio Gasalla y Graciela Borges), que assisti no telão em Buenos Aires.

O filme faz eco imediato a Mergulho. Trata da relação entre uma irmã e um irmão. Ambos já na entrada da velhice, e, curiosamente, aborda também a questão de um imóvel. As pitadas de humor dos diálogos de Mergulho são levadas a um tom mais alto em Dos Hermanos, mas a fonte de ambos é a mesma: a complexa relação entre irmãos.

Mergulho VAC2018. Fotógrafo: Glenio Campregher

Diálogos com livros

Outra referência imediata vem da literatura. E da melhor literatura brasileira contemporânea, pois foi da pena de Milton Hatoum que saiu Dois Irmãos. Verdade que a televisão se apropriou da obra, adaptando-a numa mini-série, aparentemente bem produzida. No entanto, o momento político atual brasileiro não me deixa ânimo para assistir a uma produção global. Por isto, me restrinjo ao livro.

A violência desesperada que salta da obra de Milton Hatoum é visível também em Mergulho. Dois Irmãos se pauta primitivamente na agressividade latente entre os personagens, embora, ironicamente, os gêmeos quase nunca se vejam. Faces opostas de um espelho. Por coincidência, Luis e Márcia se encontram tão somente uma vez por ano, no aniversário desta. É só então que se olham…

Claro que não poderiam ser esquecidos Caim e Abel ao se tratar da relação entre irmãos. E, pela inserção de algumas informações ocasionais nos diálogos dos personagens de Mergulho, é possível que esta passagem bíblica tenha lançado reflexos na produção imagética da diretora, já que ela, por mais de uma vez, se utiliza de imagens da antiguidade.

Na peça é citada, por exemplo, “a Barca”. É uma referência clássica a Caronte, o eterno barqueiro a transportar os mortos através do rio Aqueronte. Da mesma forma, Márcia ironiza o irmão ao oferecer-lhe bebidas e fala do pharmakon, que pode ser a água, os remédios em gota ou o álcool que os personagens ingerem durante o espetáculo. Pharmakon, aliás, é remédio, cosmético ou veneno. Basta escolher.

Símbolos

Para finalizar, deve ser acrescentado que água é um símbolo do inconsciente. O mergulho nesta água, como nos ensinou o velho Jung, é uma viagem em busca do conhecimento. Vasculhando o escuro inconsciente em busca de tesouros enterrados/naufragados/perdidos para trazê-los à luz da consciência.

Neste sentido, a direção cênica é maravilhosa. O escafandro iluminado nos oferece uma imagem visual perfeita para este mergulho de descoberta. E, ademais, o tesouro encontrado é fantástico! Uma importante relíquia da infância – embora agora desvitalizada, com as orelhas cortadas, porque joia de outra época. Mas, ainda assim, imprescindível sua descoberta para que o fluxo da vida continue…

 

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Mergulho VAC2018. Fotógrafo: Glenio Campregher

Rita Clemente, diretora

Quando alguém se debruça sobre nosso trabalho, nossa obra, a gente logo se interessa por esta pessoa. Por que? Porque já se estabelecem afinidades e este que se diz Crítico, torna-se parceiro de um processo que, por sua própria natureza, está em desenvolvimento contínuo.

Fernando Araújo, você se debruça sobre o que viu, não sobre o que poderia ter visto ou gostaria de ter visto e este é o passo determinante para um diálogo. Sim, há um desejo seu latente naquilo que escreveu e por isso me toca e faz sentido. Então, você abre uma conversa em que nós, os criadores da peça, também somos chamados a mergulhar em sua obra de observador, a sua crítica, a sua escrita, o seu veneno e remédio.

Reflexões psicanalíticas

O que li, tão bem escrito, a sua obra de crítico, aprofunda meu olhar principalmente pelas reflexões ligadas à psicanálise. Nelas posso identificar onde tocamos ou queremos tocar ( nós: eu, a autora e os atores interpretes). Também me interessou muitíssimo  referencias  que aponta, especialmente ao filme Dos Hermanos (direção de Daniel Burman, com Antonio Gasalla y Graciela Borges). 

Não assisti, mas que, agora, depois do que voce nos trouxe, preciso ver urgentemente. Sim, sua visão sobre questões psicanalíticas da abordagem fazem eco, mostram também seu pensar profundo e ressonam como aspectos que desejamos muito abordar, mas sem torná-los a tônica do trabalho. Quero sempre e cada vez mais instaurar a ficção.

Como autora do texto e diretora da peça, não vejo nenhuma relação de “Mergulho” com os trabalhos anteriores do ator André Senna, mas achei inspiradoras as diferenças apontadas. Confesso que o indivíduo é meu ponto de partida (talvez, até, o de chegada).

Agradecida, Fernando, pela sua contribuição. É mesmo uma contribuição.

Sei que voltar a ver uma obra de teatro não é nada fácil. Aquilo que nos afetou pode não afetar mais, aquilo de que tomamos sentido, num primeiro momento, pode, da segunda vez, adquirir outro. Mas também pode acrescentar a nossa experiencia algo novo. Então, pelo caráter de desenvolvimento continuo da arte cênica convido você  para  ir la  visitar “Mergulho” de novo e continuar conosco construindo essa obra.

Abraço. Seja sempre bem vindo

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Mergulho VAC2018. Fotógrafo: Glenio Campregher

RESPOSTA NOVO COLETIVO

Fomentar um diálogo com os artistas na construção de uma crítica nos parece instigante. Por isso, Fernando, em primeiro lugar, queremos agradecer por compartilhar seu olhar sobre “Mergulho” conosco.

A proposta de concepção trazida pela diretora e dramaturga Rita Clemente traz muito do que você apontou no seu texto. Nós, intérpretes, imergimos em diversos estímulos subjetivos e nos deparamos com propostas muito objetivas de texto.

Uma das preocupações do trabalho era que o espetáculo não carregasse em si algum sentido de moral, porque nosso material de pesquisa foi a filosofia e a psicologia. Seria um desperdício de discurso qualquer proposição nesse lugar.

Por isso, todas as vezes em que um determinado sentido se configurava demais como um caminho de interpretação da obra, a diretora nos propunha o exercício de recuar, distanciar da obra para que ela pudesse apontar caminhos mais coerentes. Assim, chegamos em um lugar onde a experiência de cada criador revelou-se importante para a obra. “Mergulho” deixa frestas onde o indivíduo entra, se quiser, olha, percebe e cria essa “dialética” que você menciona.

Quando o NOVO Coletivo começou a se formar queríamos muito falar sobre os afetos, caminhar sobre as linhas tênues da relação humana. Dos caminhos seguidos por nós, na contemporaneidade, construídos, muitos, apoiados na inconsciência do ego.

“Mergulho” pode ser sim, um espetáculo de conteúdo psicológico, mas, ele só o é porque direção e dramaturgia mergulharam nessas referências.

Leitimotiv

É curioso esse seu olhar e a referência que você aponta. Ela está presente na atmosfera do espetáculo e não especificamente na cena que o espectador vê. Seu olhar revelou o todo, pulsando harmonicamente, atentando para a preocupação genealógica de Nietzsche que quer saber que lugar é esse onde os valores são cunhados. O buraco de todos nós. “Mergulho”, dentro da ótica leitimotiv, é uma orquestra com uma excelente regente no comando.

Todas as outras referências apontadas por você, nos instiga a buscá-las e a percebê-las no espetáculo com a mesma beleza que você nos apresentou. Assim faremos. Com o filme e com o livro. O processo foi muito rico de referências. Foram muitas indicações de leituras, filmes, músicas e, por isso, é tão interessante que você, como espectador, tenha nos dado mais referências em consonância com as que trabalhamos em todo o processo.

Referências diversas

Rita Clemente trabalhou com referências clássicas, como o próprio Nietzsche, Platão, Derrida, Caronte, e seguindo pela história trazendo Elvis, Tom Jones, David Bowie, Mickey, tacos de pinho de riga, vestidos retrô, epígrafes textuais, escafandro… Enfim, passado, presente e futuro, em uníssono, formando uma melodia, digamos… dissonante.

E assim como nos ensinou Jung a respeito da simbologia da água, “Mergulho” se estabelece nesse lugar, nessa viagem em busca do tesouro escondido que é o de Luiz e Márcia nessa história, mas que pode ser o de cada um que assiste e que se permite refletir-se e reconhecer-se, afinal: “o inconsciente é uma máquina poderosa”.

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