Aberto em setembro de 2022, o Curso de Tecnologia em Cinema e Animação é dado no estúdio-escola Animaparque, em Cataguases
Patrícia Cassese | Editora Assistente
O dia 2 de agosto de 2024 vai ficar marcado na história de uma iniciativa de viés inovador no que tange ao ensino de cinema em Minas Gerais. É que, nesta data, os alunos da primeira turma do Curso de Tecnologia em Cinema e Animação da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG) adentram o palco do Centro Cultural Humberto Mauro, em Cataguases, na região da Zona da Mata, para a esperada cerimônia de colação de grau. Trata-se, pois, de um momento especial para o grupo docente que, dois anos atrás, se articulou para fundar o curso tecnólogo (superior de tecnologia) de acesso gratuito.
Toda esta história, vale pontuar, teve início oficial em setembro daquele ano de 2022, quando a reitora da UEMG, Lavínia Rosa Rodrigues, foi a Cataguases para a cerimônia de abertura da iniciativa. Apenas por curiosidade, cumpre registrar que a cerimônia contou com a palestra “Os Desafios da Produção Audiovisual no Brasil”, ministrada pelo cineasta Guilherme Fiúza Zenha, falecido em maio deste ano de 2024. Desde o início, o curso tem a coordenação de Carla Silva Machado, enquanto Andréa Vicente Toledo Abreu, autora do livro “Cinema e Memória em Cataguases: de Humberto Mauro ao Polo Audiovisual”, responde pela sub-coordenação.
Primeira turma
Mas qual o propósito precípuo do curso? Ao Culturadoria, Carla Silva Machado explana que o curso foi inicialmente pensado para certificar trabalhadores e trabalhadoras que, na verdade, já operavam com produção de cinema na Zona da Mata Mineira. Uma região que, diga-se, registra uma tradição sólida na sétima arte. “Assim, a primeira turma do curso já começou ali, naquele setembro de 2022”. Mas, para surpresa dos envolvidos, além da procura por parte da comunidade local, estudantes vindos de várias outras regiões de Minas Gerais, bem como do Brasil, se candidataram. “Ou seja, temos alunos de Belo Horizonte, do norte de Minas, de São Paulo, do Tocantins, do Rio de Janeiro…”, enumera.
A coordenadora frisa tratar-se de um curso tecnólogo, ou seja, superior, mas com uma duração mais enxuta – no caso, quatro semestres. “Sendo assim, a primeira turma, como dito, vai colar grau agora, neste 2 de agosto”. Justificadamente orgulha, ela lembra que muitos dos alunos dessa turma já foram inclusive premiados em festivais. “O que aponta que estamos no caminho certo”, comemora.
Carla cita a 8ª edição do Festival Ver e Fazer Filmes, realizado em julho deste ano, em Cataguases, no âmbito do Edital da Usina Criativa. “Dos oito prêmios, sete (incluindo menção honrosa) foram para produções do curso de Tecnologia em Cinema e Animação. Haviam outras pessoas inscritas, que não eram ligadas ao curso, e os nossos alunos ficaram muito bem”.
O curso
Atualmente, o curso de Tecnologia em Cinema e Animação da UEMG em Cataguases conta com seis docentes das áreas de cinema, animação, comunicação e linguagens. “Todos mestres ou doutores”, diz a coordenadora. “Além dessa turma que está se formando agora, o curso tem mais duas turmas, o que dá em torno de 60 alunos”, contextualiza Carla Silva Machado.
O curso funciona em espaço cedido pelo Polo Audiovisual da Zona da Mata. “Nele, além das salas de aula e dos laboratórios, há um estúdio para produção de live action e de animação”. O espaço, na verdade, é conhecido como Animaparque, e, em Cataguases, localiza-se no Bairro Guanabara. Viabilizado com patrocínio do Grupo Energisa, ocupa área de 10 mil m², incluindo um espaço público aberto à comunidade.
Perguntada se, passados estes dois anos, a UEMG prevê alguma mudança curricular ou adaptação, Carla conta que, por se tratar de uma iniciativa ainda recente, a coordenação ainda não sentiu necessidade de alterar o projeto pedagógico. “Geralmente, a gente espera mais turmas se formarem para avaliar a dinâmica”. Quanto a projetos, a coordenadora entende que, agora, é necessário seguir atuando com os alunos egressos. “Ou seja, sabendo por onde eles vão andar, a perspectiva profissional deles… E, ao mesmo tempo, dar prosseguimento às atividades que já são desenvolvidas, de pesquisa, de extensão e de graduação, para, assim, fortalecer o projeto, sabendo que é um curso teórico-prático. A gente oferece muitas oficinas, por exemplo. Recebemos muitos professores e profissionais de outras regiões para essa troca de experiências”.
Sávio Leite
Um dos membros do corpo docente é o diretor Sávio Leite, fundador da MUMIA – Mostra Udigrudi Mundial de Animação. Ele conta que, ainda nos primórdios da iniciativa, foi convidado, junto a outros profissionais, para atuar no grupo incumbido de pensar o curso. O convite veio de Cesar Piva, presidente da Agência de Desenvolvimento do Polo Audiovisual da Zona da Mata, e do professor (formado em Comunicação e mestre em design) Claudio Santos Rodrigues. “Desde o início fiquei entusiasmado com a proposta – mesmo porque, sou um pisciano utópico”, brinca.
Sávio confessa que ficou particularmente animado pelo fato de o curso ser realizado em Cataguases, cidade de Humberto Mauro (1897 – 1983). Um dos pioneiros do cinema brasileiro, Humberto Mauro, na verdade, nasceu em Volta Grande, mas aos 13 anos se mudou para Cataguases. Não bastasse, o diretor também salienta a tradição vanguardista da cidade, que pode ser exemplificada, por exemplo, pela icônica Revista Verde. Publicação mensal de arte e cultura do grupo artístico mineiro Movimento Verde, a revista circulou de setembro de 1927 a janeiro de 1928, bem como em maio de 1929.
“Número Errado”
Sávio, que agora divide-se entre BH e Cataguases, endossa a opinião da coordenadora Carla Silva Machado quanto ao alto nível dos trabalhos dos estudantes da primeira turma. Ele aponta, por exemplo, “Número Errado” (2024, 8min), animação em stop-motion de Leonardo Marcini Chagas, Bernardo Piva, Bruno Alves e Victor Schiavon. “É um filme que acho que vai arrebentar. Muito bonito, redondo”. O filme arrebatou quatro categorias no Festival Ver e Fazer Filmes (Fotografia, Montagem, Menção Honrosa e Melhor Filme). Aliás, nesta quinta-feira, dia 1º de agosto, está na grade do 5º Festival de Cinema Geraldo Santos Pereira. O curta promove aceitação e representatividade, por meio da história de Silvia/Maurício (abaixo, frame da animação).
O Culturadoria conversou com Leonardo Marcini sobre
Experiência do curso
Perguntado sobre a experiência da graduação no curso da UEMG, Leonardo responde de pronto com um “sensacional”. E revela uma curiosidade: não conhecia Cataguases até então. “Sou de Passos, sul de Minas, e foi uma grata surpresa vir pra cá”, diz ele, que ficou sabendo do curso por meio de uma reportagem televisiva. “Eu venho de uma formação da UEMG em Passos, em Ciências Biológicas. E por conhecer a universidade, achei muito vantajoso fazer esse curso. Da mesma forma, eu sempre fui apaixonado por cinema. Aliás, vindo para cá, acabei me apaixonando mais”.
Primeira turma
Leonardo lembra que, por se tratar da primeira turma do curso, a experiência não deixou de ser um desafio. “Porque o curso tinha acabado de abrir. Então, a gente estava passando ali por essa primeira experiência, tanto para os alunos quanto para os professores. Fora que é a primeira universidade estadual que existe na cidade. Mas o fato de ter sido um grande desafio serviu para unir todo mundo. Ou seja, uma experiência única. A relação que os alunos têm com os professores aqui, eu realmente nunca vi em outra universidade, sejam federais ou estaduais. É uma ligação de cumplicidade e de ajuda mútua entre professores e alunos”.
O embrião do curta
O agora diretor lembra que o projeto que resultou no curta “Número Errado” foi primeiramente contemplado no edital Usina Criativa, do Polo Audiovisual da Zona da Mata. “Assim, a gente conseguiu unir essas duas coisas, o projeto com o TCC. Portanto, matamos dois coelhos com uma cajadada só. Por meio da contemplação, fazer o curta da melhor forma possível”. O argumento, compartilha, vem de uma série de conversas e do conhecimento de vivências de amizades de Leonardo. “Desse modo, a gente está contando, a partir do tema transexualidade, uma história que é sobre aceitação”.
Inicialmente, a aceitação interna, que, pondera Leonardo, é a que de fato liberta. “Porque não adianta a gente tentar aprovações externas, sendo que a primeira tem que ser mesmo a nossa, a interna”. De todo modo, “Número Errado” debate como, mesmo com a auto-aceitação, o externo é capaz de afetar a gente. “Ou seja, como a sociedade, as pessoas, as situações externas, nos afetam. Eu tenho muitos amigos transexuais. Daí, pensei em como uma pessoa cisgênero, como eu, poderia abordar uma história. Ao mesmo tempo, por que não? Por que não contar histórias que, de outra forma, talvez nunca fossem contadas, contempladas… Histórias que não chegariam a ser produzidas”.
Leonardo prossegue: “E são tantas histórias tolhidas! Então, pensei em aproveitar essa oportunidade de criar um curta-metragem e falar sobre diversidade, sobre inclusão. O argumento vem daí. Histórias que não são habituais e que precisam ser contadas. São teclas nas quais a gente precisa sempre bater. Levei isso para os meus colegas e de pronto todos abraçaram a ideia”.
Equipe
O diretor de “Número Errado” diz que, definida a ideia, a divisão de tarefas se deu de forma “muito simples e muito orgânica”. Assim, Bernardo Piva foi incumbido do roteiro (“ele é um roteirista sensacional”). Já Bruno Alves, da fotografia. “E ele vem de uma fotografia de live action, mas conseguiu trazer para o stop motion uma habilidade sensacional. São processos bem distintos. Na fotografia stop motion, a luz, tudo tem que ser trabalhado em miniatura”.
Já Victor Schiavon, conta Leo, se incumbiu da direção de arte e, não bastasse, da animação e trilha. “Na verdade, ele fez, ali, muitos braços. E, dentro da direção de arte, conseguiu pegar o que eu tinha de ideia e transparecer. Na animação, o trabalho dele também foi sensacional. O Victor, ele já vem também de outros trabalhos de animação, como ‘Cosmo Cosmonauta’, do Guilherme Fiuza. E dentro da trilha sonora, ele também é excepcional”.
Costura bem sucedida
Ao fim, Leonardo assume ser difícil falar dos colegas. “Porque eu sou extremamente apaixonado por eles e todos fazem um trabalho incrível. No curto, eu fui, através de tudo isso, ‘pegando’ a direção. Por exemplo, transformar aquele argumento em roteiro junto ao Bernardo, pensar uma montagem e uma decupagem que funcionassem, que parecessem com o que a gente queria e que não afetasse a narrativa com os materiais, com o orçamento que a gente tinha, sabe? Ou seja, foi costurando entre todas essas áreas que eu e meus colegas conseguimos fazer esse curta-metragem”.
Sinopse
Em linhas gerais, “Número Errado” conta a história de uma pessoa que tem sua rotina perturbada por uma série de ligações e de cartas endereçadas por engano. E, através dessas cartas e ligações, há a busca para saber quem é essa pessoa misteriosa. Assim, por meio dessa narrativa, a animação coloca reflexões sobre aceitação, sobre a busca da verdadeira identidade. E, tal qual, como o preconceito (seja por parte da família ou da sociedade) pode inibir, tolher ou mesmo enterrar verdades. “A verdade é que, enquanto a gente não aceitar quem de fato a gente é, nunca vai ser feliz”, entende o diretor.