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Teatro

Curadoria: qual o papel nas artes cênicas?

Curadora Italiana Piersandra Di Matteo ministra curso In-Betweennes – Reciprocidade e dramaturgia urbana na curadoria de artes cênicas em BH

Foto: Guido Mencari

Definir práticas de pensamento, produzir contextos, temporalidades. São estes alguns dos desafios de quem se dedica à curadoria. São características que podem se aplicar, por exemplo, às artes visuais, à música, mas foram usadas para descrever especialmente a tarefa do curador de artes cênicas. Ou seja, aquela figura que, atuando dentro de um festival de teatro, por exemplo, escolhe as peças e demais ações que vão compor a parte artística do evento. Esta semana a curadora italiana Piersandra Di Matteo participa em Belo Horizonte do 2º Encontro sobre Curadoria em Artes Cênicas, uma ação extraordinária promovida pela Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp.

Para quem não conhece, o evento é hoje um dos mais interessantes da área realizados no Brasil.  E sempre interessou aos organizadores da MITsp arejar o pensamento sobre a curadoria. Piersandra é diretora do mestrado de curadoria em artes cênicas da Universidade de Veneza (IUAV), teórica da área e reconhecida internacionalmente pelas publicações sobre o assunto.

Ela ministra o curso In-Betweennes – Reciprocidade e dramaturgia urbana na curadoria de artes cênicas. No encontro, compartilha experiências de projetos submetidos à curadoria e fala sobre o assunto como um todo.

Como podemos conceituar curadoria atualmente? O conceito mudou ou tem mudado nos últimos anos?

Na última década, é fato que a figura do curador de artes performáticas se estabeleceu internacionalmente como junção fundamental na afirmação de novos paradigmas para a cena, na definição de práticas de pensamento, produção de contextos, espacialidade antropológica e temporalidade fora do esquema clássico da programação exclusiva de espetáculos. Isso gerou novas posturas do espectador, diferentes relações com as instituições e outras dinâmicas possíveis de relação com a vida urbana.

Você entende a prática da curadoria como um gesto descolonial. Como é isso?

Vejo uma urgência na prática curatorial que atua no campo das artes, que é a de promover ações, contextos e ambientes capazes de desmantelar as barreiras que mantêm os sujeitos divididos e reféns da lógica da subordinação (racial, sexual, econômica). As artes cênicas devem ser capazes de pensar e trabalhar para romper as fronteiras que isolam os indivíduos em esquemas hierárquicos. Além disso, promover ações de comunhão, táticas de reciprocidade, tornando a arte do tempo e do corpo um domínio que pertence concretamente à multidão.

No cuidado de um programa, em um festival, na construção de uma exposição, trata-se de contemplar o urbano e suas complexidades. Também de descarregar sempre um problema, o relacionamento interno e atual de alguém com o poder. Ademais, se perguntar como é possível questionar formas expressivas e cognitivas que remontam às formas neocoloniais e patriarcais que se combinam para moldar subjetividades de acordo com o princípio da competição, tomando como modelo, a empresa.

Piersandra, a curadoria feita nas artes em geral e nas artes cênicas tem um papel social? Qual é ele e como é possível dialogar esse trabalho com a sociedade e com o espaço que ele ocupa?

Eu respondo com uma citação de Elke Van Campenhout: “A curadoria não é uma declaração, mas uma redistribuição de poder que nos faz repensar a estrutura de nossos corpos e pertences sociais”. Sendo assim, acredito que não é possível pensar na prática curatorial nas artes do espetáculo sem uma leitura cuidadosa da morfologia social em que operamos. Hoje, o “teatro” não pode ser inscrito na consciência de que esse tecido social deve ser tomado como elemento político. Trata-se de relacionar-se com os conflitos que atuam na materialidade da crise econômica, migratória e ecológica e, portanto, articular operações, discursos, pesquisas, processos e práticas artísticas. Tudo isso, a fim de promover polos relacionais, genealogias excêntricas, trajetórias dramatúrgicas urbanas que nos permitam recusar outras formas do possível e do desejável, dar substância à visão de um “presente alternativo”, nas palavras de Donna Haraway. 

 

Urban Performance, trabalho exposto no Atlas of Transitions Biennale 2019, com curadoria de Piersandra Di Matteo Foto: Michele Lapini

Atualmente as pessoas têm acesso a multitelas, à internet e também a diversas fontes de informação. Como é fazer curadoria em um momento que todo mundo tem acesso a tudo? Como fica o trabalho de curadores neste contexto?

É uma questão de retornar ao corpo. Artes cênicas e teatro são os espaços em que é possível alimentar novos paradigmas relacionais. Praticar em comum, cultivar táticas imaginativas, para experimentar alternativas aos modelos de poder. A cena performativa, atuando no aqui e agora e através dos corpos pode ser o horizonte operacional capaz de questionar padrões expressivos e cognitivos relacionados às formas de autismo identitário que apaga diferenças. Penso em uma cena capaz de produzir práticas imaginativas e afetivas, que ativam áreas de proximidade corporal, afeto, escuta e políticas de contato. Isso tornaria o relacionamento com o outro o espaço para dar vida a diferentes temporalidades. conectados.

Qual a relação entre a curadoria e criação artística? Algumas pessoas dizem que o trabalho do curador é mais importante do que o do artista. Qual a relação entre os dois pontos?

Não acho interessante colocar a questão nesses termos, pois reafirma uma lógica de oposição, segundo a qual alguém é melhor e/ou mais essencial que outro. Eu gosto de pensar em termos de diálogo, troca, embutimento, hibridação de práticas, entre dois pólos essenciais para a criação de um horizonte de significado.

Você é italiana, está dando o curso no Brasil e já passou por outros países. Há alguma diferença na curadoria entre os países?

Certamente, todo contexto tem suas peculiaridades e precisa de uma análise específica da dinâmica que ocorre na sociedade. A análise também precisa ser feita nos modos de produção, nas linguagens artísticas, nas políticas culturais em relação ao sistema de arte. No entanto, em todos eles é possível traçar um traço comum. Isso ocorre, na minha opinião, quando a curadoria considera seu próprio espaço de ação contra o autismo de identidade que cancela as diferenças, contra qualquer submissão feita pelo biopoder, na atual crise da democracia representativa que abriu o caminho para o surgimento de populismos e a reafirmação de demandas nacionalistas.

 

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